terça-feira, 30 de março de 2010

Tolerância zero
02h10m
A Igreja Católica está mergulhada numa das mais sérias crises da sua história. Com uma agravante em relação aos anteriores períodos de perturbação: hoje, a velocidade com que a informação corre coloca sobre a Igreja - e, acima de tudo, sobre o seu máximo responsável, o Papa - uma pressão esmagadora.
A cada dia que passa, a cada nova notícia sobre alegados actos de pedofilia praticados por sacerdotes, cresce a sensação de estarmos perante uma daquelas histórias que ameaçam não ter fim. O desafio para Bento XVI e para a "sua" Igreja é, por isso, tremendo.
O cardeal Saraiva Martins, comentado a tragédia, disse há dias que a Igreja é pela "tolerância zero", mas que se recusa a "lavar a roupa suja" em público. Infeliz expressão, a do cardeal: foi justamente por não ter aplicado "tolerância zero" aos casos de suposta pedofilia que se conhecem há muitos anos que se chegou a este ponto.
Há, obviamente, muitas causas para este degradante efeito. Mas uma delas está, parece-me, à frente das outras: o entendimento que a Igreja tem sobre a sexualidade. Ou melhor: a incapacidade que a Igreja demonstra em tratar os problemas da sexualidade, execrados sobretudo quando se fala de preservativos, homossexualidade ou, pecado dos pecados, o recurso ao aborto. O maniqueísmo nunca foi bom conselheiro, mas a Igreja insiste nele.
Gravo na memória um elucidativo episódio desta maneira abstrusa de olhar e analisar a sexualidade. Há duas décadas e meia, o meu professor de Religião e Moral, pároco de uma pequena vila transmontana, mostrou-nos, através dos antigos diapositivos, imagens de fetos retalhados. Tudo para nos fazer ver como o inferno é o único lugar indicado para as mulheres que decidem abortar. O exemplo vale o que vale, mas tem, creio, a virtude de apontar o modo escolhido para "catequizar" o povo...
Bem sei que hoje os métodos são diferentes. Mas são apenas os métodos, porque os fins permanecem, genericamente, os mesmos. A moral que a Igreja prega, cujos princípios são apreciáveis, está há muito em crise. A perda de influência junto dos crentes, o aparecimento de outras "religiões", a globalização, tudo contribui para ajudar a desmoronar este edifício secular. Isso e os próprios padres. Há dias, num notável artigo no "Público", o jornalista António Marujo lembrava que o celibato e a formação nos seminários, muito limitadora dos afectos, também ajudam a explicar o que está a passar-se. Assino por baixo.
De modo que, quando o cardeal Saraiva Martins fala em tolerância zero, toca no ponto. Lamentavelmente, toca ao contrário. Foi por ter fechado os olhos a ignomínias que conhecia e por querer continuar a fechá-los que a Igreja permitiu que aqui chegássemos.

2 comentários:

Paulo MB disse...

O problema põe-se porque a hierarquia andou anos e anos (séculos?) a fazer de conta. E isso foi muito feio para quem se diz inspirado pelo Espírito Santo.
Estarão esses senhores todos no inferno?

LAM disse...

caro Gavião,

Não consta que o sindicato dos professores, o quartel dos bombeiros em peso ou os sindicatos da construção civil, tenham alguma vez vindo a terreiro fazer a defesa de algum dos seus membros ou associados acusados de crimes sérios. Esses crimes são individuais e é ao indivíduo que cabe fazer a sua defesa perante a justiça e a sociedade.
O que torna estes casos de pedofilia no seio da ICAR diferentes é que, a própria ICAR assume para si a defesa e uma suposta punição dos prevaricadores. Opta, pensa e age nesta matéria como instituição. Normal será portanto que, como crimes de uma instituição, ou de que uma instituição não soube, não quis ou não pôde pôr cobro, seja vista pela sociedade.