domingo, 24 de fevereiro de 2008

Ana Gomes: o que se sabe sobre os voos da CIA é apenas a ponta do iceberg

Eurodeputada do PS desafia Barroso a esclarecer a passagem por Portugal de navios com prisioneiros de Guantánamo

Público, 24.02.2008 - Adelino Gomes, Paulo Magalhães (RR)

A antiga embaixadora de Portugal na Indonésia e actual eurodeputada socialista Ana Gomes diz que Sócrates está a ser " mal aconselhado e mal informado" sobre a passagem por Portugal de aviões da CIA com prisioneiros de ou para Guantánamo. Lamenta que o PS esteja a ser "conivente" com uma "tentativa de obstrução" de um inquérito parlamentar ao caso. Queixa-se de, por isso, estarem a tentar cilindrá-la no PS. Mas diz que não pára, a menos que lhe passem "um carro por cima". E declara-se empenhada na militância socialista quer ao mais alto nível, no Parlamento Europeu (PE), em Bruxelas, quer ao nível local, em Sintra, onde tem residência.

PÚBLICO - O caso do trânsito por Portugal dos chamados voos da CIA, de cuja denúncia foi uma das vozes mais incómodas, teve esta semana mais um desenvolvimento, com o Governo britânico a reconhecer a passagem de aviões com prisioneiros pelo seu território.

ANA GOMES - É a demonstração de que não foi apenas por Portugal que esses voos passaram. Verificou-se agora que os desmentidos categóricos feitos no Reino Unido afinal não valiam rigorosamente nada. Como não valiam os desmentidos de denúncias anteriores, como a das prisões secretas, que o Presidente Bush em Setembro de 2006 veio a admitir. Isto só demonstra que é preciso investigar. Foi o que o Parlamento britânico fez, num inquérito de resto baseado num relatório daquela organização, a Reprieve, que recentemente publicou um relatório sobre Portugal.Menorizado pelo primeiro-ministro...... Por todo o Governo português e por muita gente, lamentavelmente. Resulta do cruzamento de uma lista com voos de e para Guantánamo - na maior parte militares e que passaram pelo território nacional - com as listas divulgadas pelo Governo norte-americano com as datas das transferências dos prisioneiros de Guantánamo. Esses voos só podiam ter passado com autorização dos ministérios dos Estrangeiros e da Defesa. A lista não foi fornecida nem à Assembleia da República, nem ao Parlamento Europeu (PE) pelo Governo, apesar de repetidamente pedida por mim, mas foi obtida e foi entregue por mim ao PE. Esses voos não passaram apenas por Portugal, naturalmente. Vieram de Espanha, de Itália. No PE dedicámo-nos também à investigação na Alemanha, na Suécia, na Grã-Bretanha. A diferença é que aqui houve uma vontade de obstruir a investigação. Esta sexta-feira, José Sócrates veio dizer que negara esses voos da mesma maneira que Tony Blair, pois assim fora informado. Mas que, se vierem a provar-se, seria "extremamente lamentável". É uma boa notícia para as suas posições?Sem dúvida. Tenho dito que acho que o primeiro-ministro tem sido mal informado e mal aconselhado nesta matéria. Há indícios muito fortes relacionados com o nosso país que obrigam a investigar. Há uma investigação em curso, para apuramento de eventuais responsabilidades criminais, mas há uma investigação política que devia ser empreendida pelo Parlamento. Espero que se tirem as lições deste caso britânico. Os dados que existem são de facto graves. Um dos voos - de que eu tinha pedido a lista de passageiros e de tripulação - vai de Diego Garcia para Rabat, vem para o Porto, fica dois dias aqui, e sai para Cabul. Defende, portanto, que Portugal avance finalmente com uma investigação própria? Política. É isso que põe o nosso país numa situação desconfortável: nos outros países houve inquéritos parlamentares que estão a revelar dados, aqui não. Infelizmente, até no meu partido ouço pessoas dizerem que isto é uma questão da espuma da política. Como se as questões do Estado de direito e a própria eficácia da luta contra o terrorismo não fossem essenciais da matriz socialista.Porque é que essa investigação não avança? Porque há vontade de encobrir. A responsabilidade desses encobrimentos atravessa vários governos, mas hoje, muito claramente, está muito centrada no Governo Durão Barroso. Notei, aliás, as declarações interessantes deste [na quinta-feira], como presidente da Comissão, ao lado de Gordon Brown, exigindo transparência dos governos nesta matéria. Eu sugeria que se começasse pela transparência dos documentos do gabinete do dr. Durão Barroso, primeiro-ministro, quando foi pedido parecer a um jurisconsulto português sobre a passagem de navios de guerra envolvidos no trânsito e interrogatório desses prisioneiros. Não estamos a falar apenas de voos civis, da CIA, nem de voos militares, mas também de navios envolvidos nesse mesmo tráfego ilegal, o que implica a sonegação de pessoas à justiça. Se elas são suspeitas de terrorismo, eu quero que elas sejam exemplarmente julgadas e punidas, se são culpadas. A maior parte já foi libertada, porque estava inocente; os que eventualmente forem culpados acabam por o ser também porque a tortura e [as outras] ilegalidades praticadas foram tais que as provas caem por terra.Disse que se queria silenciar isto em nome da aliança com os EUA.Sim. Mas, neste momento, a principal fonte da informação são os EUA. E mais ainda quando tivermos, como acredito, uma administração democrata. Aliás, o presidente Bush, quando admitiu a existência de prisões secretas, não o fez por receio das reacções europeias, que foram coniventes com isto tudo, infelizmente, mas com receio das reacções dos próprios agentes da CIA, que estavam a ser os primeiros a libertar estas informações. E isto continua. Nós só estamos a falar da ponta do iceberg. Há muito mais para sair. Isto não vai parar. Não há vantagem nenhuma em encobrir. É isso que eu tenho dito desde sempre aqui, ao Governo português, em que actuei sempre com total lealdade e transparência. Penaliza-me que o Governo do meu partido - o partido defensor dos direitos humanos e da democracia em Portugal - esteja hoje conivente com uma tentativa de encobrimento e até de obstrução de inquéritos. Lamentavelmente, a minha delegação no PE esta semana pediu que não se fizesse o relatório de seguimento [do caso], que estava previsto.Tem fé que ainda possa haver um inquérito parlamentar? Não se trata de fé, mas de ser persistente. E eu não vou parar. Porque esta é uma questão fundamental da nossa democracia. Quanto mais encobrirmos mais expomos o nosso país às consequências de ser visto como um país que está a obstruir a descoberta da verdade num caso que envolve tortura, sequestro, violação dos direitos humanos.Esperava outra atitude do primeiro-ministro? Acho que o primeiro-ministro está mal informado. Quem está mal informado, informa-se melhor. Espero que tire as devidas conclusões do exemplo do Governo Gordon Brown e que não continue a dizer que não há elementos novos. Há. Tão graves que precisam de uma investigação. Não só porque no nosso país é crime omitir a denúncia de colaboração com actos de tortura, mas também porque é preciso que evitemos que isto possa continuar a passar-se e pode estar a passar-se. Nessa lista não há apenas voos militares americanos. Há voos militares sauditas e do Kuwait. Não há nenhuma espécie de aliança que justifique um pedido de passagem. A partir do momento em que se sabe que os EUA não concedem o estatuto de prisioneiros de guerra, Guantánamo fica numa situação de clara ilegalidade.

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