(Público)17.08.2008, Rui Moreira
Em 1950, Miguel Torga publicou uma obra, em prosa, com o nome Portugal. Nesse livro, Torga escreveu sobre cidades e regiões do país e lembrou, a propósito de Lisboa, que a centralização que o progresso tem acentuado, fazendo convergir todo o esforço do país para a sede do poder, aviva feridas mal cicatrizadas e abre outras de maior purulência ainda; um convívio mais íntimo com a nata do mundo, uma situação de privilégio em relação à cultura e ao gosto torna penoso o contacto com maneiras terrosas e analfabetas.
Em 1950, Miguel Torga publicou uma obra, em prosa, com o nome Portugal. Nesse livro, Torga escreveu sobre cidades e regiões do país e lembrou, a propósito de Lisboa, que a centralização que o progresso tem acentuado, fazendo convergir todo o esforço do país para a sede do poder, aviva feridas mal cicatrizadas e abre outras de maior purulência ainda; um convívio mais íntimo com a nata do mundo, uma situação de privilégio em relação à cultura e ao gosto torna penoso o contacto com maneiras terrosas e analfabetas.
Lembrei-me da obra do grande escritor e do que escreveu sobre Lisboa e Porto a propósito do ministro Lino e dos últimos acontecimentos que o leitor bem conhece. Note-se que Mário Lino é uma pessoa encantadora, com excelente trato e com um apurado sentido de humor. Encontro nele, com quem simpatizo quase tanto como dele discordo, alguém que Torga descreveu, quando falava da ironia e superior desdém com que o lisboeta fala da província.
De facto, é assim que Mário Lino olha o Porto, a pior das províncias porque dela se imagina capital e sem a qual aquelas não têm voz. Lino tem uma predilecção pela grande obra pública, que vê como fonte de progresso e de desenvolvimento. Teve fé, em tempos idos, nas virtudes da economia planificada e continua a acreditar no efeito indutor que os grandes investimentos têm na prosperidade do povo, por muitos e longos sacrifícios que eles acarretem. Já deixou de acreditar que o Estado deva ter o monopólio do investimento público, mas continua a olhar com grande desconfiança para a concorrência.
É assim, por desapaixonada convicção, que Lino entende a sua missão. Mas, estando em Lisboa, colhe dela o inebriante narcisismo da capital. Regressando a Torga, poderemos entender Lino percebendo que faz o seu papel no destino da capital do império, de Lisboa, essa flor (o narciso) em que o destino nos transformou; o Tejo, o rio onde nos perdemos a contemplar a própria imagem.
É à beira do Tejo, engalanado de pontes e de Expos, de novos museus, de obras sucessivas na frente ribeirinha, de TGV e de outras maravilhas prometidas pela engenharia, que Lino se sente bem, tranquilo, em sossego. Quando cá vem, percebe-se bem que tem, connosco, uma incompatibilidade de feitos e de interesses, e que após cada viagem ao Porto, a essa terra de insensatos complexos e de muitas e desvairadas gentes onde tem de aturar as questíunculas do Metro e o bairrismo agressivo dos autarcas, regresse a Lisboa aborrecido e renitente.
Horrorizado com o sotaque e desiludido com a cidade lamurienta, que está como está porque nela ninguém se entende, e que depois se revolta porque ninguém a entende, Lino não percebe por que é que o Porto não compreende a dimensão dos superiores desígnios nacionais. As gentes tripeiras não entendem que há uma evidente vantagem para toda a nação em tudo o que beneficia a sua excelsa capital: uma vantagem que transcende quaisquer custos e que, por isso mesmo, exige que a análise custo-benefício seja duplamente rigorosa para o que se faz fora dos seus muros e no resto do território nacional. Não admira nada que, no tempo de Pombal, a capital se tenha visto obrigada a quebrar o Porto, pela mão dos Almadas, para conseguir vergar e meter o país entre varais. Mário Lino está bem escudado entre os seus.
Porque, e isso Torga não adivinhava, o país nunca foi tão inviável e o Governo nunca foi tão desesperadamente portofóbico como hoje. Uma inviabilidade que, por desespero, acentua essa fobia contra a resistência liberal e irredutível dos portuenses. Mas, para nós, tripeiros, não há outra forma de estar, nem de ser.
E, acreditem, faz mal quem não nos entende e despeita porque, como também escreveu o poeta, a propósito da nossa cidade, quem morre pela liberdade todos os séculos é capaz dos mais espontâneos entusiasmos cívicos. (...) É, evidentemente, preciso sanear-lhe certos recantos da alma e da bolsa e actualizar-lhe algumas instituições. Mas nada de mexer-lhe na trave mestra do coração.
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