(Expresso) José Pedro Castanheira, 2 de Ago de 2008
A caminho dos 16 anos, Mário Soares era aluno do Colégio Moderno, propriedade de seu pai. "Estava integrado num grupo de estudantes, dirigidos pelo capitão Marques Pereira, cuja tarefa era ajudar a desenhar, no relvado, a frase "Viva Portugal". Nós íamos vestidos de branco - e não com a farda da Mocidade Portuguesa! Durante o ensaio geral, apareceu um senhor que se sentou numa cadeira ao nível do relvado, rodeado de uns tipos, certamente da PIDE". O jovem Mário estava a "uns vinte ou trinta metros de distância", ainda assim o suficiente para reconhecer "sua excelência". "Tinha o sobretudo aos ombros e umas botas de atilhos. É verdade: eu vi as botas de Salazar!"
Mais de duas décadas depois, e no rescaldo da revelação no estrangeiro do chamado "escândalo ballet rose", Salazar viria a deportar Mário Soares, por tempo indeterminado, para a ilha de São Tomé. Era lá que vivia quando o ditador caiu da cadeira.
A caminho dos 16 anos, Mário Soares era aluno do Colégio Moderno, propriedade de seu pai. "Estava integrado num grupo de estudantes, dirigidos pelo capitão Marques Pereira, cuja tarefa era ajudar a desenhar, no relvado, a frase "Viva Portugal". Nós íamos vestidos de branco - e não com a farda da Mocidade Portuguesa! Durante o ensaio geral, apareceu um senhor que se sentou numa cadeira ao nível do relvado, rodeado de uns tipos, certamente da PIDE". O jovem Mário estava a "uns vinte ou trinta metros de distância", ainda assim o suficiente para reconhecer "sua excelência". "Tinha o sobretudo aos ombros e umas botas de atilhos. É verdade: eu vi as botas de Salazar!"
Mais de duas décadas depois, e no rescaldo da revelação no estrangeiro do chamado "escândalo ballet rose", Salazar viria a deportar Mário Soares, por tempo indeterminado, para a ilha de São Tomé. Era lá que vivia quando o ditador caiu da cadeira.
Num extenso artigo que escreveu para o último número da revista "Visão História" o antigo Presidente da República e primeiro-ministro conta com detalhe o episódio. Estava numa barbearia nativa quando a Emissora Nacional - a única rádio autorizada - deu a notícia. "Dei um salto na cadeira e, sem conter a minha excitação, gritei: "um hematoma cerebral, num homem de 80 anos!? Salazar está morto em pouco tempo?" Interrompi o corte de cabelo, saí imediatamente da loja e vim para a rua".
"Terá de abandonar veleidades políticas"
Soares regressou a Lisboa em Novembro do mesmo ano. Salazar já tinha sido substituído no governo por Marcelo Caetano. "Ele fora meu professor de Direito em três cadeiras. Numa delas, História do Direito Português, pediu-me para apresentar um trabalho". Soares, que já se licenciara em Letras, era aluno voluntário e estava dispensado de ir às aulas "Aliás, as aulas tinham pouco interesse. Limitavam-se a seguir as sebentas. Dizia-se nessa época que uma sebenta bem sabida valia 18...".
Marcelo pediu-lhe um trabalho sobre "A teoria do poder popular e a restauração portuguesa". Entretanto, "o Abranches Ferrão, com quem tinha uma excelente relação, pediu-me para publicar o meu trabalho como separata da revista que ele dirigia, "Jornal do Foro"". Pouco depois, Marcelo chamou Soares ao seu gabinete na Faculdade de Direito. "Disse-me que queria publicar o meu trabalho na sua revista "O Direito". Respondi que já estava comprometido com o Abranches Ferrão. "É pena", comentou. A seguir, disse-me que eu devia estudar um pouco mais, e que faria bem em tomar o curso mais a sério. Então, pôs-me a mão em cima do ombro e disse-me: "O senhor é um aluno que até pode ficar nesta casa como professor. Mas é claro que, para isso, terá de abandonar as suas veleidades políticas". E eu respondi: "Mas quem lhe diz a si que eu quero ficar cá nesta casa?". Percebi imediatamente que a minha resposta o tinha deixado muito confundido".
Soares regressou a Lisboa em Novembro do mesmo ano. Salazar já tinha sido substituído no governo por Marcelo Caetano. "Ele fora meu professor de Direito em três cadeiras. Numa delas, História do Direito Português, pediu-me para apresentar um trabalho". Soares, que já se licenciara em Letras, era aluno voluntário e estava dispensado de ir às aulas "Aliás, as aulas tinham pouco interesse. Limitavam-se a seguir as sebentas. Dizia-se nessa época que uma sebenta bem sabida valia 18...".
Marcelo pediu-lhe um trabalho sobre "A teoria do poder popular e a restauração portuguesa". Entretanto, "o Abranches Ferrão, com quem tinha uma excelente relação, pediu-me para publicar o meu trabalho como separata da revista que ele dirigia, "Jornal do Foro"". Pouco depois, Marcelo chamou Soares ao seu gabinete na Faculdade de Direito. "Disse-me que queria publicar o meu trabalho na sua revista "O Direito". Respondi que já estava comprometido com o Abranches Ferrão. "É pena", comentou. A seguir, disse-me que eu devia estudar um pouco mais, e que faria bem em tomar o curso mais a sério. Então, pôs-me a mão em cima do ombro e disse-me: "O senhor é um aluno que até pode ficar nesta casa como professor. Mas é claro que, para isso, terá de abandonar as suas veleidades políticas". E eu respondi: "Mas quem lhe diz a si que eu quero ficar cá nesta casa?". Percebi imediatamente que a minha resposta o tinha deixado muito confundido".
Advogado de Cristina de Mello contra os dois irmãos
Já nos anos sessenta, mas ainda com Salazar no poder, Soares teve uma séria disputa profissional com Marcelo Caetano. O dirigente oposicionista tinha sido contratado como advogado pela irmã do Jorge e do José Manuel de Mello, no âmbito da herança do patriarca Manuel de Mello (genro de Alfredo da Silva, o fundador da CUF). A herança, que ainda não havia sido repartida, estava entregue a uma holding, a Sogefi, "criada precisamente pelo Marcelo. Tanto quanto sei, foi a primeira holding criada em Portugal".
Cristina de Mello apareceu no escritório de Soares e pediu-lhe para ser seu advogado. Soares nem queria acreditar. Cristina estava casada com António Champalimaud, de quem tivera sete filhos. Na altura, porém, "já vivia com um sobrinho do prof. Mário Azevedo Gomes e a lei não lhe permitia o divórcio. 'Porquê eu?', quis saber. "Porque o senhor tem coragem de enfrentar a PIDE, o que é muito pior que enfrentar os meus irmãos".
Já nos anos sessenta, mas ainda com Salazar no poder, Soares teve uma séria disputa profissional com Marcelo Caetano. O dirigente oposicionista tinha sido contratado como advogado pela irmã do Jorge e do José Manuel de Mello, no âmbito da herança do patriarca Manuel de Mello (genro de Alfredo da Silva, o fundador da CUF). A herança, que ainda não havia sido repartida, estava entregue a uma holding, a Sogefi, "criada precisamente pelo Marcelo. Tanto quanto sei, foi a primeira holding criada em Portugal".
Cristina de Mello apareceu no escritório de Soares e pediu-lhe para ser seu advogado. Soares nem queria acreditar. Cristina estava casada com António Champalimaud, de quem tivera sete filhos. Na altura, porém, "já vivia com um sobrinho do prof. Mário Azevedo Gomes e a lei não lhe permitia o divórcio. 'Porquê eu?', quis saber. "Porque o senhor tem coragem de enfrentar a PIDE, o que é muito pior que enfrentar os meus irmãos".
"Nem pela caneta nem a tiro"
Soares aceitou o patrocínio e começou a estudar o caso, no sentido de pôr uma acção "contra os dois Mellos". Como tinham como advogado o próprio Marcelo Caetano, "pedi-lhe uma entrevista. Foi no seu escritório, na Avenida António Augusto de Aguiar, quase em frente do actual El Corte Inglés. Recebeu-me com muita cordialidade. Expliquei que a D. Cristina de Mello queria a sua parte na herança do pai. "Não é possível", disse-me o Marcelo. "Trata-se de um grande grupo económico e é muito importante que haja em Portugal grupos com aquela dimensão, que não sejam separados." Fiz-lhe ver que isso ia contra os interesses da senhora. Marcelo respondeu-me, muito firme: "Não conseguirá isso nem pela caneta, nem a tiro".
Soares aceitou o patrocínio e começou a estudar o caso, no sentido de pôr uma acção "contra os dois Mellos". Como tinham como advogado o próprio Marcelo Caetano, "pedi-lhe uma entrevista. Foi no seu escritório, na Avenida António Augusto de Aguiar, quase em frente do actual El Corte Inglés. Recebeu-me com muita cordialidade. Expliquei que a D. Cristina de Mello queria a sua parte na herança do pai. "Não é possível", disse-me o Marcelo. "Trata-se de um grande grupo económico e é muito importante que haja em Portugal grupos com aquela dimensão, que não sejam separados." Fiz-lhe ver que isso ia contra os interesses da senhora. Marcelo respondeu-me, muito firme: "Não conseguirá isso nem pela caneta, nem a tiro".
"Os maiores honorários da minha vida"
Caetano era uma sumidade em Direito Administrativo, pelo menos em Lisboa. A única forma de o enfrentar seria arranjar alguém equivalente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. "Fui até lá falar com o prof. Ferrer Correia", que muito mais tarde viria a ser presidente da Fundação Gulbenkian. O catedrático de Coimbra recebeu o advogado de Lisboa, que lhe expôs o caso em termos genéricos, não referindo nem o nome da família Mello, nem o do advogado litigante. "Claro que a senhora tem direito", opinou de pronto Ferrer Correia, a quem Soares pediu um parecer escrito.
Feito e devidamente pago o parecer, que "era completamente favorável" às pretensões da sua cliente, Soares pediu uma nova entrevista a Marcelo. "Confirmei-lhe que ia mover uma acção contra os dois irmãos Mello. E mostrei-lhe o parecer do Ferrer Correia. O Marcelo fechou a cara e limitou-se a comentar, desagradado: "faça como quiser..."".
Passados uns dias, recebeu um telefonema de um velho amigo e colega de curso, Serra Lopes. "Explicou-me que, como o prof. Marcelo Caetano não gostava de ir a tribunal, tinha subestabelecido nele. E convidou-me para almoçar". O almoço era, obviamente, de negócios. No final, estava encontrada a solução para o diferendo sobre a herança de Manuel de Mello, com dispensa do tribunal. E qual foi essa solução? "A senhora ficou com o dinheiro a que tinha direito" - explica Mário Soares. Era uma fortuna imensa. Soares foi bem recompensado: "Foram os maiores honorários que ganhei como advogado". Quanto, ainda hoje não diz. "Eu e a D. Cristina de Mello ficámos amigos até ela morrer", em 2006.
Caetano era uma sumidade em Direito Administrativo, pelo menos em Lisboa. A única forma de o enfrentar seria arranjar alguém equivalente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. "Fui até lá falar com o prof. Ferrer Correia", que muito mais tarde viria a ser presidente da Fundação Gulbenkian. O catedrático de Coimbra recebeu o advogado de Lisboa, que lhe expôs o caso em termos genéricos, não referindo nem o nome da família Mello, nem o do advogado litigante. "Claro que a senhora tem direito", opinou de pronto Ferrer Correia, a quem Soares pediu um parecer escrito.
Feito e devidamente pago o parecer, que "era completamente favorável" às pretensões da sua cliente, Soares pediu uma nova entrevista a Marcelo. "Confirmei-lhe que ia mover uma acção contra os dois irmãos Mello. E mostrei-lhe o parecer do Ferrer Correia. O Marcelo fechou a cara e limitou-se a comentar, desagradado: "faça como quiser..."".
Passados uns dias, recebeu um telefonema de um velho amigo e colega de curso, Serra Lopes. "Explicou-me que, como o prof. Marcelo Caetano não gostava de ir a tribunal, tinha subestabelecido nele. E convidou-me para almoçar". O almoço era, obviamente, de negócios. No final, estava encontrada a solução para o diferendo sobre a herança de Manuel de Mello, com dispensa do tribunal. E qual foi essa solução? "A senhora ficou com o dinheiro a que tinha direito" - explica Mário Soares. Era uma fortuna imensa. Soares foi bem recompensado: "Foram os maiores honorários que ganhei como advogado". Quanto, ainda hoje não diz. "Eu e a D. Cristina de Mello ficámos amigos até ela morrer", em 2006.
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