sábado, 22 de agosto de 2009

Newton de Macedo:
Da crise moral à religiosidade cívica

Pedro Baptista (Entre as Artes e as Letras) Julho e Agosto de 2009
Na ressaca das cinzas e dos fumos da guerra de 1914-18, Newton de Macedo declara que a carnificina bélica anulara “o coeficiente de racionalidade” que controlava a vontade interior de cada um, propiciando a sua erupção caótica nos contornos mais abomináveis da barbaria.
A guerra suspendera o respeito pela personalidade humana, onde assentavam todos os valores morais; provocara uma hecatombe moral, com os valores jazendo junto aos cadáveres dos quinze milhões de mortos; e deixara a república e a democracia entre dois fogos, tanto a nível nacional, como global…
Novos valores! Mas estes fundamentaram-se sempre em crenças religiosas. Onde se fundamentarem agora com as religiões falidas, incapazes de impedirem a carnificina, tendo sido em seu nome que a Europa se tornara um lodaçal sanguinolento?
Sendo o dever a “base fundamental de toda a moderna moralidade”, teria de libertar-se dos “entraves religiosos”; mas como, sendo moralidade e dever um “produto lógico e histórico da mentalidade religiosa”?
Kant, que considerava os mandamentos dogmáticos ou os preceitos de obediência à autoridade como imorais, terá saído deste círculo vicioso pelo conceito de imperativo categórico… Mas o imperativo kantiano, embora racionalizado, não deixava de se basear num acto de fé, particularmente ingente no filósofo de Konisberg pela sua educação pietista!
Também fracassaram os esforços da ciência ou da metafísica para, em alternativa, construírem novos fundamentos morais que pudessem ser aceites pelo pensamento lógico e sentidos em adesão emocional; assim como os esforços para encontrar fundamentos laicos à noção de dever, não passaram de “soluções provisórias”…
Que terra suficientemente sólida e úbere, para assentar no homem os valores necessários aos novos tempos?
O único caminho, parece ser, para Newton, o da renovação da religiosidade, o da vitalidade religiosa
Só a “vitalidade religiosa” mais espontânea, e portanto mais íntima e autêntica, lembrando a daqueles “em cujas almas brilha ainda o Santelmo duma religiosidade infantil”, como uma realidade psicológica natural, é susceptível de receber o plexo do dever, produzindo, seguindo, rejeitando ou reformando normas de conduta na acção, aferindo, pela reflexão crítica, os valores, e produzindo, pelo pensamento sistematizador, a moral.
Ou seja uma religiosidade a montante de qualquer religião e muito mais de qualquer religião histórica ou institucional!
Não a religiosidade acanhada que se tem contentado com “as soluções simplistas das confissões de fé”.
Tanto a Igreja, que se reivindicava da voz de Jesus, como a moral que nela se estribava, incapazes de defenderem o preceito principal do respeito pela vida humana face à “vontade de viver” dos grupos em confronto, fizeram ruir todo o “património moral”.
A “vontade de viver” dos litigantes, colocada acima de todos e quaisquer valores, teve como outra face a transformação em “farrapos de papel” da pessoa humana, numa Europa enlameada em sangue onde toda a moral se volatilizou como passado.
Newton enfatiza que se esta “vontade de viver”, “valor moralmente indeterminado”, legitimasse o comportamento de um grupo litigante, nomeadamente em busca da sobrevivência, como ocorre no teatro da guerra, todos os outros valores se eclipsariam, incluindo os chamados “valores do estado de guerra”, já de si uma “forçada concessão” da moral e do direito.
Ontem como hoje, o Deus único cai com o estado de guerra substituído pelo paradoxo de vários deuses únicos, ou melhor, vários Deus-único, expressos em figuras de diversas reminiscências etno-culturais. A paz aproxima os deuses, em particular os únicos, fundindo-os em Um só único de uma comunidade ecuménica. Pelo contrário, o estado de tensão bélica e a guerra divide-os, afasta-os, diversifica-os, ao mesmo tempo que únicos e exclusivistas, excomungando os outros. Acrescentando-lhes particularidades distintivas, encontra-lhes imagens expressivas dotadas da sanha guerreira para participarem como estandarte na orgia do sangue.
A Igreja não foi capaz de evitar a “nacionalização” do “dogma” pela “vontade de grupo”, o espectáculo dum deus único evocado simultaneamente por todos os digladiantes. Não porque não quisesse ser árbitro, mas porque já não detinha esse papel, restando-lhe o recurso à “neutralidade passiva”.
Religião e religiosidade são conceitos distintos. Se a primeira são os cristais, a segunda é a água-mãe; se a religião é a ondulação e a espuma, a religiosidade é o próprio mar.
Com a guerra dinamizando a consciência colectiva, vive-se “uma crise de transição e de mediocridade moral” e atravessa-se uma fase em que, usando a expressão do sociólogo francês, “os antigos deuses envelhecem ou morrem, sem terem ainda nascido outros novos”.
A religiosidade também pode ser encarada ou como a que se expressa nas “fórmulas históricas” da religião, sendo então uma religiosidade fóssil e institucional, ou, uma “religiosidade nascente”, difusa e de contornos indeterminados mas, ao mesmo tempo, “não cristalizada”, fundida com a espiritualidade da alma colectiva, “fumo eterno de mistério e de ansiedade”.
Se as “religiões confessionais” faliram enquanto relicário ou guião dos “valores colectivos”, a “tendência que as fez nascer”, coincidente com o que possuem de “eterno”, mantém-se viva, provocando uma contradição entre a sede de religiosidade e o vazio histórico incapaz de responder que caracteriza os tempos hodiernos.
Sendo religião e religiosidade conceitos distintos, como vimos, só coincidem no educando se o espaço que deve ser de autenticidade e criação for preenchido com conceitos históricos ancilosados,, sendo quimérica qualquer “galvanização das fórmulas religiosas históricas”, que mais não fariam do que transformar o “efémero” em “eternidade”!
A neutralidade religiosa deve estender-se a todas as confissões religiosas históricas, mas apenas enquanto “fase provisória na dialéctica da acção educativa”, sublinhando-se a relatividade histórica de cada uma delas.
Já a dialéctica da acção educativa deve dirigir-se, sem qualquer neutralidade, para o desenvolvimento da consciência religiosa ou seja para a “sede de mistério e de entusiasmo heróico por uma vida espiritual que transcenda” “o egoísmo rasteiro”.
Esta educação para a religiosidade nascente pode ser ministrada nas escolas mesmo nas disciplinas científicas, aparentemente com pouco de humano, bastando abandonar “o aparelho deformador e criminoso da educação passiva”, “abrindo as janelas amplas por onde penetra a aragem inebriante, vinda da região longínqua do mistério, lá onde a zona do conhecido confina com as regiões ignoradas onde a ciência ainda não penetrou”, mostrando como o “património científico é uma criação humana” resultante de uma “ansiedade espiritual sempre insatisfeita”.
Ou seja, abertura para cruzar as pontas do cognoscível, início do incognoscível, com os lugares mais elevados, para lá dos dizíveis e, quiçá, dos pensáveis, da espiritualidade humana, na condição de os dados obtidos não se transformarem em luz ofuscante das consciências que leve à desistência criativa.
Esta religiosidade nascente é o culto da mais elevada espiritualidade do indivíduo em busca de comunhão com os espaços avançados da realidade conhecida, aberta aos signos, recebendo a “aragem” dos mistérios em que se forja o desconhecido, sendo por isso que compete ao educador criar um “condicionalismo espiritual” que ajude à eclosão das diversas formas da “consciência religiosa”.
É ao mesmo tempo “crença inabalável na fecundidade da matriz social”, pois o individualismo de cada um só se pode elevar ao topo da espiritualidade escutando “as pulsões do todo a que pertence”, multiplicando “as ligações entre o indivíduo e o colectivo”, “criando estados colectivos de consciência hipertrofiada”, devendo ser o inculcamento dessa mesma “crença” o principal objecto dos institutos educativos, pois só daí poderá advir uma “nova atitude religiosa”.
Também porque se o “esquematismo espiritual” leva a que a ciência e o saber cristalizem, é preciso manter acesas as tendências dionisíacas que permitam impulsionar “a ciência e o saber ainda por fazer”, onde se derrubem as “torres de marfim em que vegeta o pseudo-saber dos diletantes e dos monstros de erudição”.
É pois necessária uma escola que seja capaz de assumir como principal axe orientador, o princípio do “respeito pela originalidade do educador e pela espontaneidade do educando”.
Os professores não poderão nem deverão ser um mero “transmissor da ciência já feita”, um repetidor sebêntico dos saberes conhecidos e adoptados, avessos à dinâmica da vida, e como tal fossilizados, antes deve apostar-se na fecundidade da sua originalidade e criatividade.
Os alunos, por sua vez, não podem nem devem ser reduzidos a “uma massa mole, inconsistente”, submissa e apática, sem uma dinamização personalista de “elaboração pessoal”, capacidade para analisarem com juízos próprios as opiniões que se lhes deparam.
Se assim não for, o trabalho escolar será, do ponto de vista do afrontamento da crise nacional, que é também crise de uma democracia que precisa de renovação permanente, inteiramente inútil.
Nesta valorização espiritual da missão do professor, o profissional do ensino cria “vontades individuais” através da “acção sugestiva” de uma inteligência sustentada na vontade, metáfora que não é apenas um recurso estilístico, mas uma metáfora viva designando o universo da religiosidade espontânea que será o esteio da consciência moral.
Na necessária fecundação pedagógica, o professor será um ministro de uma Santa Causa, pela importância salvadora da sua acção para a República, para a democracia e para o país, dada a crise moral, mormente o derrotismo, a apatia e a abulia generalizadas, com o país incapaz de reagir transformando criativamente as suas capacidades latentes.
Trabalhará para um heroísmo entusiástico de uma vida espiritual superior a qualquer “egoísmo rasteiro”; para uma religiosidade nascente abandonado que seja a educação passiva; abrir-se-ão as janelas por onde penetrará “o mistério”, onde o conhecido confina com o ignoto, ou o ainda ignoto, mostrando como o “património científico é uma criação humana” resultante de uma “ansiedade espiritual sempre insatisfeita”.
Orientarão ainda o “processo de criação religiosa” substituindo as “fórmulas secas do intelectualismo da elite” pela vitalidade, com que a massa tenta, sem conseguir, exprimir-se.
Finalmente, o magistério assumir-se-á como ministério sagrado porque o dever, cujo exercício é pilar estrutural da conduta moral, só na vitalidade da religiosidade popular espontânea encontra fundamento. Não se trata de uma moral religiosa de instituições desacreditadas, perante as quais o Estado deve manter a neutralidade; trata-se de construir uma religião moral no sentido de uma moralidade cívica e social fundada na espontaneidade da religiosidade de cada um e de todos.

1 comentário:

M. Machado disse...

Parebéns Doutor Pedro, artigo pqrece ultrapassado e é mais que actual até porque a religiosidade civica que fala não é religião nenhuma, ainda bem, porque as religioes chamadas historicas são os principais causadores dos conflitos e da violencia no mundo.