Do Nacional Canibalismo
(GRANDE PORTO) 7.8.09 Por Pedro Baptista, Doutor em Filosofia, escritor e investigador
(GRANDE PORTO) 7.8.09 Por Pedro Baptista, Doutor em Filosofia, escritor e investigador
Tem-se manifestado preocupação com o acinte a que chegou o debate político em Portugal. Argumento e contra-argumento pervertem-se em favor da troca de insinuações aviltantes, de preferência arrasadoras, numa retórica onde, sob as cortesias protocolares, lê-se o cinismo ou a violência da hipocrisia. Voltamos ao “desideratum” de esmagar o adversário, retalhá-lo, saciar a razão na sua deglutição e descansarmos em paz, limpo o terreno da peçonha das hordas inimigas!
Distante? Nem há quarenta anos, vivíamos assim. E, já na altura, assim vivíamos há 400 anos, em que se foi constituindo a nossa estrutura mental! De João III a Salazar, passando por Sebastião de Carvalho e Melo, Mouzinho da Silveira ou Afonso Costa, fosse a Igreja persecutória como até aos inícios do Sec. XVIII, ou espezinhada pelo Liberalismo e pela 1ª República, a estrutura mental do português manteve-se apontada ao esmagamento do outro, à sua devoração numa sacra orgia de sangue espargido.
Cada corrente de pensamento só se sente autónoma, personalizada e dignificada, quando se deleita no olhar agonizante do adversário feito inimigo destruído. A pureza, a auto-sustentação de cada um, depende da destruição da impureza do outro, seja nos afrontamentos entre católicos e protestantes, jesuítas e pombalinos, eclesiásticos e maçons, tradicionalistas e modernistas, espiritualistas e racionalistas, materialistas e idealistas, incapazes de integrarem o outro como parte de si ou como parte de nós enquanto portugalidade.
Sem branquear a inquisição dominicana, responsável pelo terror maior e decisiva da decadência, todas as inquisições portuguesas se elevaram ao veículo sacrossanto do Estado, por este usadas como trituradoras da divergência ideológica, capa, por sua vez, da rapina dos bens materiais dos grupos malquistos.
Paradigmática desta psicopatia canibalística foi a exumação em Goa dos restos mortais de Garcia da Horta, o botanista e médico autor de “Colóquio”, que tinha colocado o país na vanguarda da modernidade da farmacopeia europeia e mundial, na fase final da afirmação crescente da nacionalidade, iniciada em 1143, agora, ao crepúsculo do Século XVI, entrados no processo de decadência…
Garcia era filho de judeus espanhóis, expulsos pelos reis católicos, acolhidos como tantos na raiana Castelo de Vide. Instalou-se em Goa tendo-se dedicado à investigação em medicamentos, a que deu mais importância do que à observação clínica. Tendo a Inquisição se instalado na Índia em 1565, quando o botanista faleceu em 1580, ano da perda da independência, caiu-lhe sobre a família, queimou-lhe a irmã em auto-de-fé e exumou os seus restos mortais para os assar e purificar na santíssima fogueira.
Exemplo paradigmático que não tem um só sentido, antes se torna, estruturante da dominante mentalidade nacional.
Se os Cães do Senhor exumaram as ossadas de Garcia para as devorarem, o jacobinismo republicano e positivista ressuscitou e branqueou o mito de Pombal, enquanto perseguia sacerdotes no plano político. O mesmo com a perseguição sanguinolenta aos anarquistas, aos republicanos revilharistas e sobretudo aos comunistas por parte do Estado Novo.
Nestes quatro séculos, desde a perda da independência, são poucas as excepções a ideologias a fundirem-se com o poder do Estado que não tenham deixado as mãos tintas de sangue e os dentes marcados pela trituração do diverso e do divergente.
E entre os que, desiludidos com esta mentalidade, se afastaram dos corredores do poder, não foram poucos os que fizeram de si próprios o objecto da sanha purificadora e redentora, Antero, Soares dos Reis, Camilo, Trindade Coelho, Mouzinho de Albuquerque, Laranjeira, levando Unamuno a interrogar-se se não estaríamos perante um “pueblo suicida”, onde “todo lo que es noble se suicida, todo lo que es canalla triunfa”.
Só escapam os que se recolheram à marginalidade eremítica, como Sá de Miranda, Herculano, Tarrozo, Régio ou Torga entre muitos outros. Ou se lançam no exílio como Francisco Sanches, Damião de Gois, Ribeiro Sanches ou Verney, para não falar do rol imenso do Século XX que expulsa para o exílio no interior ou no estrangeiro a quase totalidade da intelectualidade portuguesa.
As consequências para a cultura portuguesa desta estatuição da reflexão em instrumento de guerra ideológica, política e redentora, são nefastas e trágicas, provocando uma cultura timorata, débil e desequilibrada.
Só com o 25 de Abril de 1974, e ao cabo do sinuoso processo revolucionário, triunfou pela primeira vez, desde há quatro séculos, como bandeira superior, a entronização do diálogo, do respeito pelo outro, da necessidade do outro e da dialéctica com o outro como constituinte da república e da portugalidade. Esta nova estrutura mental de tolerância enraizou-se na nova geração, que não soube o que é ser perseguida ideologicamente, nem conheceu os horrores físicos e morais da guerra que tudo devassa e destrói…
É a modernidade e europeidade de tolerância e diálogo, para alterarmos o rumo decadentista e retomarmos a afirmação nacional e europeia.
Não permitamos voltar à intolerância que só se sacia no festim do cadáver do outro: no que Miguel Real apodou, em obra recente, de canibalismo culturofágico.
Distante? Nem há quarenta anos, vivíamos assim. E, já na altura, assim vivíamos há 400 anos, em que se foi constituindo a nossa estrutura mental! De João III a Salazar, passando por Sebastião de Carvalho e Melo, Mouzinho da Silveira ou Afonso Costa, fosse a Igreja persecutória como até aos inícios do Sec. XVIII, ou espezinhada pelo Liberalismo e pela 1ª República, a estrutura mental do português manteve-se apontada ao esmagamento do outro, à sua devoração numa sacra orgia de sangue espargido.
Cada corrente de pensamento só se sente autónoma, personalizada e dignificada, quando se deleita no olhar agonizante do adversário feito inimigo destruído. A pureza, a auto-sustentação de cada um, depende da destruição da impureza do outro, seja nos afrontamentos entre católicos e protestantes, jesuítas e pombalinos, eclesiásticos e maçons, tradicionalistas e modernistas, espiritualistas e racionalistas, materialistas e idealistas, incapazes de integrarem o outro como parte de si ou como parte de nós enquanto portugalidade.
Sem branquear a inquisição dominicana, responsável pelo terror maior e decisiva da decadência, todas as inquisições portuguesas se elevaram ao veículo sacrossanto do Estado, por este usadas como trituradoras da divergência ideológica, capa, por sua vez, da rapina dos bens materiais dos grupos malquistos.
Paradigmática desta psicopatia canibalística foi a exumação em Goa dos restos mortais de Garcia da Horta, o botanista e médico autor de “Colóquio”, que tinha colocado o país na vanguarda da modernidade da farmacopeia europeia e mundial, na fase final da afirmação crescente da nacionalidade, iniciada em 1143, agora, ao crepúsculo do Século XVI, entrados no processo de decadência…
Garcia era filho de judeus espanhóis, expulsos pelos reis católicos, acolhidos como tantos na raiana Castelo de Vide. Instalou-se em Goa tendo-se dedicado à investigação em medicamentos, a que deu mais importância do que à observação clínica. Tendo a Inquisição se instalado na Índia em 1565, quando o botanista faleceu em 1580, ano da perda da independência, caiu-lhe sobre a família, queimou-lhe a irmã em auto-de-fé e exumou os seus restos mortais para os assar e purificar na santíssima fogueira.
Exemplo paradigmático que não tem um só sentido, antes se torna, estruturante da dominante mentalidade nacional.
Se os Cães do Senhor exumaram as ossadas de Garcia para as devorarem, o jacobinismo republicano e positivista ressuscitou e branqueou o mito de Pombal, enquanto perseguia sacerdotes no plano político. O mesmo com a perseguição sanguinolenta aos anarquistas, aos republicanos revilharistas e sobretudo aos comunistas por parte do Estado Novo.
Nestes quatro séculos, desde a perda da independência, são poucas as excepções a ideologias a fundirem-se com o poder do Estado que não tenham deixado as mãos tintas de sangue e os dentes marcados pela trituração do diverso e do divergente.
E entre os que, desiludidos com esta mentalidade, se afastaram dos corredores do poder, não foram poucos os que fizeram de si próprios o objecto da sanha purificadora e redentora, Antero, Soares dos Reis, Camilo, Trindade Coelho, Mouzinho de Albuquerque, Laranjeira, levando Unamuno a interrogar-se se não estaríamos perante um “pueblo suicida”, onde “todo lo que es noble se suicida, todo lo que es canalla triunfa”.
Só escapam os que se recolheram à marginalidade eremítica, como Sá de Miranda, Herculano, Tarrozo, Régio ou Torga entre muitos outros. Ou se lançam no exílio como Francisco Sanches, Damião de Gois, Ribeiro Sanches ou Verney, para não falar do rol imenso do Século XX que expulsa para o exílio no interior ou no estrangeiro a quase totalidade da intelectualidade portuguesa.
As consequências para a cultura portuguesa desta estatuição da reflexão em instrumento de guerra ideológica, política e redentora, são nefastas e trágicas, provocando uma cultura timorata, débil e desequilibrada.
Só com o 25 de Abril de 1974, e ao cabo do sinuoso processo revolucionário, triunfou pela primeira vez, desde há quatro séculos, como bandeira superior, a entronização do diálogo, do respeito pelo outro, da necessidade do outro e da dialéctica com o outro como constituinte da república e da portugalidade. Esta nova estrutura mental de tolerância enraizou-se na nova geração, que não soube o que é ser perseguida ideologicamente, nem conheceu os horrores físicos e morais da guerra que tudo devassa e destrói…
É a modernidade e europeidade de tolerância e diálogo, para alterarmos o rumo decadentista e retomarmos a afirmação nacional e europeia.
Não permitamos voltar à intolerância que só se sacia no festim do cadáver do outro: no que Miguel Real apodou, em obra recente, de canibalismo culturofágico.
2 comentários:
Parabéns Pedro.
Este artigo não podia se mais eloquente e mais expressivo do actual panorama politico que nos cerca,
Se é certo que cada corrente política e intelectual tem sobrevivido da canibalização das correntes adversárias, negando-as e humilhando-as, também não é menos certo que, por efeito do ambiente educacional e social, os portugueses há muito que desistiram de cultivar os valores fundamentais que premeiam as sociedades avançadas. O desinteresse pela cultura e pela política, permitiram que gente proveniente dos sectores menos capacitados da sociedade, tomassem as rédeas do poder. Como diz e é verdade o P.B., este comportamento primário e intolerante tem raízes na profundidade da nossa história. Nunca nos revelamos à altura dos desígnios que cunharam as nossas origens como povo livre e soberano. Definhamos na politica e na cultura, nos valores e nos princípios e, se nada for feito para o impedir, neste colossal vazio continuaremos a marchar até nos extinguir-mos como nação.
Belíssimo artigo, Doutor Pedro Baptista. É pena que no seu blog sempre que há mais profundidade sejam muito poucos a participar. Estado do partido, estado da política. A constante que extrai dos últimos 4 séculos é verdadeira e esperemos nunca voltar a ela se é que não estamos lá.
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