Bolhão em cinco questões
Elisa, Ferreira, Eurodeputada (JN, 02.03.2008)
Para quem afiança que o Porto e a sua sociedade civil estão apáticos e desmotivados, a recente polémica em torno dos destinos do Bolhão veio demonstrar, felizmente, o contrário. A verdade é que os portuenses por nascimento e os que o são pelo coração (incluindo alguns cidadãos estrangeiros) mantêm viva a energia que os faz reagir quando sentem estar em risco alguns dos símbolos mais autênticos da cidade. O estranho do processo é que, no essencial, parecem não existir desacordos de fundo, ninguém discute que o Bolhão necessita de obras de requalificação vultuosas e urgentes nem que "a preservação da traça arquitectónica histórica e do comércio tradicional do Mercado" devam ser o "eixo central" da intervenção (citações do site da Câmara Municipal). Ora, se o executivo camarário encontrou, através de concurso público, uma entidade privada disposta a arcar com todos os custos de investimento (cerca de 50 milhões de euros), concebendo, construindo e explorando o "novo Bolhão" e comprometendo-se ainda a pagar à Câmara um milhão de euros quando receber a licença de construção (mais eventuais rendas adicionais num prazo de dez anos), quem poderá de boa fé, não aplaudir a solução?Mas haverá mesmo só demagogia em quem discorda? É que, de facto, aquela solução também me parece boa, mesmo muito boa, contanto se consigam obter respostas claras e rigorosas para, pelo menos, cinco questões elementares e muito concretas. Antes de as enunciar, começo por um considerando enquadrador sobre a função urbana de alguns grandes equipamentos.
Contexto em que não vale muito a pena que se discuta, em abstracto e por comparação directa com o que fizeram outras cidades do mundo, se é preferível transformá-los em galerias de arte, museus, mercados ou centros de artesanato urbano. Porque todas as opções são teoricamente possíveis e defensáveis, sendo que o que importa é que tais espaços acolham actividades que, sendo viáveis e totalmente coerentes com as características do centro urbano, sirvam sobretudo o projecto de desenvolvimento que se pretende implementar na cidade e na zona em particular. Isto é, mais do que manter a propriedade e encontrar quem pague as obras, importa pensar e decidir qual é o programa de funcionamento adequado e qual o seu lugar na dinâmica da cidade.
1º - Regressando ao Bolhão, e admitindo salvaguardada a preservação do exterior do edifício, a primeira questão tem a ver com o interesse em garantir que este (com as características únicas que todos lhe reconhecemos) seja o invólucro de um programa de actividade de qualidade compatível, isto é, que se insira e contribua para a tão necessária redinamização da cidade e da sua baixa. Ora, estará claro esse programa mais global, e, nesse quadro, identificado o papel que o Bolhão deve desempenhar?
2º - A segunda questão prende-se directamente com a anterior. Nada tenho (como demonstrei no passado) contra as parcerias público-privadas nem me tenho oposto (pelo contrário) a concessões de projectos públicos a empresas privadas, tudo desde que os termos e condições contratuais assegurem a salvaguarda do interesse público inerente ao projecto. Ora a verdade é que, mesmo em contratos cujos termos de referência são relativamente lineares e objectivos (como a construção e exploração de estradas, pontes, redes de abastecimento de águas ou saneamento), as condições de penalização, e mesmo de cessação do contrato, não evitam uma conflitualidade elevada durante a execução do mesmo; por maioria de razão, importa garantir que, num projecto em que vai ser entregue a privados durante duas gerações a exploração de um dos edifícios mais emblemáticos do Porto, tais especificações contratuais estejam suficientemente explicitadas e possam ser verificáveis e evocáveis em caso de incumprimento. Em síntese, há que clarificar qual o controlo efectivo da entidade pública sobre as opções do concessionário ao longo de um período de meio século.
3º - Uma terceira questão surge a propósito do interesse repetidamente afirmado como essencial da manutenção no referido espaço de um "mercado de frescos" como o que hoje lhe dá a traça característica; não é difícil perceber, dados os valores envolvidos, a dificuldade em recuperar um investimento privado vultuoso largamente com base nas rendas desse tipo de actividade comercial (mesmo a cinquenta anos de prazo); a tendência natural será, pois, a de indemnizar generosamente os actuais comerciantes (e estou segura que a maioria o aceitará, aliviada!), reforçando ao máximo o peso das vertentes mais lucrativas do projecto e reduzindo na prática a de mercado à sua expressão mais simples, sempre com o acordo tácito dos mais directamente interessados. Não haverá nada de errado nisto mas haverá, isso sim, que evitar equívocos quanto ao que seja, afinal, o programa funcional do novo Bolhão que se pretende construir.
4º - A quarta questão é sobretudo prudencial não será excessivo aplicar, em simultâneo, o mesmo modelo (de concessão a privados da exploração de equipamentos públicos a médio e longo prazo associados a investimentos de requalificação vultuosos) a este e outros equipamentos urbanos relevantes? Não seria menos arriscado testar (e afinar) esse modelo antes de o generalizar e arriscar uma hipoteca por décadas da autonomia autárquica na gestão desses equipamentos?
5º - Por último estando na sua fase de arranque mais um ciclo de apoio europeu ao desenvolvimento português (QREN), nele se incluindo programas específicos de requalificação urbana, e sendo o Norte e o Porto zonas do país particularmente carenciadas e em que as condições de financiamento a fundo perdido são mais vantajosas, terão sido exploradas todas as hipóteses de financiamento alternativo da recuperação em vista? Será que, um projecto como o Bolhão, caro mas emblemático e estratégico, não encontra nos fundos europeus alternativas aos grandes riscos que se correm ao entregá-lo durante cinco décadas a mãos privadas?Talvez estas sejam perguntas menores; por isso mesmo, não custará dar-lhes resposta!
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