Do solitário ao solidário em Proença e Camus
Pedro Baptista (Entre as Artes e as Letras) 16.12.09
Tal como em Sartre , com a trágica responsabilidade decorrente da condenação à liberdade, também em Raúl Proença, a doutrina de auto-determinação ética pela vontade da consciência reflexiva exige do homem o máximo da sua dádiva, da sua capacidade de sofrimento, da sua erecção de consciência divinizada.
Se o homem é o seu destino ao mesmo tempo que constrói em liberdade o seu destino, este é a tragédia de ser sede de infinito e certeza da limitação, ânsia de eternidade e certeza da precariedade, mero átomo no imenso vazio que constitui o universo.
Face ao que, sem religiões nem narcóticos, a atitude só pode ser olhar de frente a verdade na viril coragem de ser herói, ou santo, senhor do sentir, do pensar e do agir, homem superior porque não afirmá-lo?
No deserto universal, a consciência é o oásis, o canto virtuoso do nietzschiniano aristocrata e senhor, que trava vitorioso este combate solitário.
Combate que é, em primeiro lugar, combate pela conquista da própria solidão, ou seja pela auto-determinação da consciência e da vontade. Mas que não fica, porque não pode ficar, por aí. Como viria a ser em Albert Camus, o filósofo que afirma que o problema do suicídio é o único “problema filosófico verdadeiramente sério” , o solitário é não apenas a condição do solidário, mas implica-o, porque: em primeiro lugar, “se nós não somos, eu não sou” , pelo que eu só sou quando nós somos; em segundo, porque a solidariedade precede sempre a felicidade sendo que, como é consabido, “é preciso imaginar Sísifo feliz” .
Do “Mito de Sísifo” a “A Peste”, em todo o processo de construção da ética camusiana, o Eu faz-se Nós, porque não poderia existir sem este e porque evolui da revolta solitária à revolta solidária, como acontece com o Eng. D´Arrast que, na floresta amazónica, ajudando um esquálido pagador de promessas a levar um pedregulho para a Igreja da povoação, guina inopinadamente para a esquerda, descendo a ladeira e depositando-o na lareira do tugúrio que servia de habitáculo ao homem .
A cena lembra a do Samaritano que ajuda Jesus a subir o Gólgota. No entanto é outro o papel de D’Arrast: ele retira à divindidade o que lhe era destinado e entrega-o ao homem.
Também em Proença, longe embora dos contornos que viria a tomar o percurso camusiano, aparentemente pouco atreito a heroicidades ou a santidades, o solitário eleva-se ao solidário, atingindo a pureza e a plenitude, pelo sacrifício ao serviço do bem comum, por uma via emocional, portanto. Está aberto o caminho para que, a partir daqui, as coordenadas éticas do comportamento possam advir de referências transcendentais.
No entanto, o homem de elite, o herói, entidade explicitamente salvívica e encarnação agnóstica do Redentor, não é, todavia, pelo menos literalmente, o Salvador Supremo. É uma entidade ascensional ao alcance de qualquer que se queira assumir como Senhor de si mesmo e queira seguir a via sacrificial da heroicidade, através da combatividade, para tocar a transcendência, construindo a sua própria metafísica que se há-de tornar, afinal, e é o que interessa, o grande alfobre das referências éticas do comportamento.
Se até 1921, nos textos proençanos, o homem de elite, o herói, parece aproximar-se do Salvador, ou pelo menos assumir-se sem peias como um salvador, queixando-se enfaticamente de que ainda não tinha aparecido um “grande mestre da acção moral”, já que Antero se havia suicidado e Herculano dedicado às oliveiras, mancando pois o exemplo do verdadeiro herói, o do que o é até ao fim, “o dos homens que saberão e quererão salvar Portugal e por isso o salvarão” , anos depois, implantada a Ditadura, com o país prestes a ser enxameado pelas pagelas do Salvador da Pátria de Santa Comba Dão, encarnado no bronze que Soares dos Reis fundiu para o fundador da nacionalidade, Proença haveria de pedir a todos os Céus e a todos os Santos, que o livrassem seja de que salvador fosse, ciente do perigo dos missionários da utopia, reclamando a tranquilidade de saber que não mais será salvo por ninguém!
Com o trágico irónico e cruel da história a esvaecer a sua mitosofia da elite heróica, Proença terá percebido que muito poucos estarão dispostos a seguir o difícil caminho para que desafia a todos e a cada um, em particular, claro, aos intelectuais.
Proença terá percebido que poucos estarão dispostos. Poucos ou… nenhuns! E com a derrota, no Porto, do 3 de Fevereiro de 1927, derradeira esperança democrática, terá verificado que também os deuses da história não estavam virados para ajudarem a sua doutrina. Forçado ao exílio, adoece psiquicamente em 1932 num processo sinuoso que o vai aniquilar em menos de uma década. Há dias, num colóquio consagrado ao grupo “Seara Nova”, uma psiquiatra apodava a sua enfermidade de “doença filosófica” . É que a heroicidade proençana tornou-se trágica, tal como a tragédia de toda a sua vida.
Embora, afinal, cá para nós que ninguém nos ouve, feitas as contas até ao fim, qualquer outra seja tão trágica como a dele.
Pedro Baptista (Entre as Artes e as Letras) 16.12.09
Tal como em Sartre , com a trágica responsabilidade decorrente da condenação à liberdade, também em Raúl Proença, a doutrina de auto-determinação ética pela vontade da consciência reflexiva exige do homem o máximo da sua dádiva, da sua capacidade de sofrimento, da sua erecção de consciência divinizada.
Se o homem é o seu destino ao mesmo tempo que constrói em liberdade o seu destino, este é a tragédia de ser sede de infinito e certeza da limitação, ânsia de eternidade e certeza da precariedade, mero átomo no imenso vazio que constitui o universo.
Face ao que, sem religiões nem narcóticos, a atitude só pode ser olhar de frente a verdade na viril coragem de ser herói, ou santo, senhor do sentir, do pensar e do agir, homem superior porque não afirmá-lo?
No deserto universal, a consciência é o oásis, o canto virtuoso do nietzschiniano aristocrata e senhor, que trava vitorioso este combate solitário.
Combate que é, em primeiro lugar, combate pela conquista da própria solidão, ou seja pela auto-determinação da consciência e da vontade. Mas que não fica, porque não pode ficar, por aí. Como viria a ser em Albert Camus, o filósofo que afirma que o problema do suicídio é o único “problema filosófico verdadeiramente sério” , o solitário é não apenas a condição do solidário, mas implica-o, porque: em primeiro lugar, “se nós não somos, eu não sou” , pelo que eu só sou quando nós somos; em segundo, porque a solidariedade precede sempre a felicidade sendo que, como é consabido, “é preciso imaginar Sísifo feliz” .
Do “Mito de Sísifo” a “A Peste”, em todo o processo de construção da ética camusiana, o Eu faz-se Nós, porque não poderia existir sem este e porque evolui da revolta solitária à revolta solidária, como acontece com o Eng. D´Arrast que, na floresta amazónica, ajudando um esquálido pagador de promessas a levar um pedregulho para a Igreja da povoação, guina inopinadamente para a esquerda, descendo a ladeira e depositando-o na lareira do tugúrio que servia de habitáculo ao homem .
A cena lembra a do Samaritano que ajuda Jesus a subir o Gólgota. No entanto é outro o papel de D’Arrast: ele retira à divindidade o que lhe era destinado e entrega-o ao homem.
Também em Proença, longe embora dos contornos que viria a tomar o percurso camusiano, aparentemente pouco atreito a heroicidades ou a santidades, o solitário eleva-se ao solidário, atingindo a pureza e a plenitude, pelo sacrifício ao serviço do bem comum, por uma via emocional, portanto. Está aberto o caminho para que, a partir daqui, as coordenadas éticas do comportamento possam advir de referências transcendentais.
No entanto, o homem de elite, o herói, entidade explicitamente salvívica e encarnação agnóstica do Redentor, não é, todavia, pelo menos literalmente, o Salvador Supremo. É uma entidade ascensional ao alcance de qualquer que se queira assumir como Senhor de si mesmo e queira seguir a via sacrificial da heroicidade, através da combatividade, para tocar a transcendência, construindo a sua própria metafísica que se há-de tornar, afinal, e é o que interessa, o grande alfobre das referências éticas do comportamento.
Se até 1921, nos textos proençanos, o homem de elite, o herói, parece aproximar-se do Salvador, ou pelo menos assumir-se sem peias como um salvador, queixando-se enfaticamente de que ainda não tinha aparecido um “grande mestre da acção moral”, já que Antero se havia suicidado e Herculano dedicado às oliveiras, mancando pois o exemplo do verdadeiro herói, o do que o é até ao fim, “o dos homens que saberão e quererão salvar Portugal e por isso o salvarão” , anos depois, implantada a Ditadura, com o país prestes a ser enxameado pelas pagelas do Salvador da Pátria de Santa Comba Dão, encarnado no bronze que Soares dos Reis fundiu para o fundador da nacionalidade, Proença haveria de pedir a todos os Céus e a todos os Santos, que o livrassem seja de que salvador fosse, ciente do perigo dos missionários da utopia, reclamando a tranquilidade de saber que não mais será salvo por ninguém!
Com o trágico irónico e cruel da história a esvaecer a sua mitosofia da elite heróica, Proença terá percebido que muito poucos estarão dispostos a seguir o difícil caminho para que desafia a todos e a cada um, em particular, claro, aos intelectuais.
Proença terá percebido que poucos estarão dispostos. Poucos ou… nenhuns! E com a derrota, no Porto, do 3 de Fevereiro de 1927, derradeira esperança democrática, terá verificado que também os deuses da história não estavam virados para ajudarem a sua doutrina. Forçado ao exílio, adoece psiquicamente em 1932 num processo sinuoso que o vai aniquilar em menos de uma década. Há dias, num colóquio consagrado ao grupo “Seara Nova”, uma psiquiatra apodava a sua enfermidade de “doença filosófica” . É que a heroicidade proençana tornou-se trágica, tal como a tragédia de toda a sua vida.
Embora, afinal, cá para nós que ninguém nos ouve, feitas as contas até ao fim, qualquer outra seja tão trágica como a dele.
1 comentário:
Albert Camus...certamente!!!
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