Políticas sociais na cidade abandonada
(Público) 18.10.09 Luís Fernandes e Alexandra Oliveira Ramos
As operações de renovação urbana são um dos instrumentos fortes que a gestão política das cidades têm ao seu dispor. As cidades comportam-se como organismos vivos, que necessitam de intervenções no seu edificado e de medidas que assegurem aos seus habitantes mais e melhores condições de vida, que dependem largamente da qualidade do habitat urbano. As operações levadas a cabo nos centros históricos são talvez as mais emblemáticas, porque correspondem a uma espécie de intervenção cardíaca: intervêm no coração duma cidade, no lugar onde primeiro pulsou e que, pelos tempos fora, lhe mantém uma identidade feita do testemunho do que permanece. Outras operações intervêm em zonas que o resto da cidade olha com distância e, não raro, com receio: os "bairros sociais degradados".
O modo como uma dada autarquia intervém em zonas deste tipo define bem o que os seus dirigentes pensam sobre o que são políticas sociais. Tomemos um exemplo concreto: o Bairro de São João de Deus (BSJD), na periferia norte do Porto. Começado a construir em 1944, o último edifício será construído em 1994, fixando assim cerca de 5000 habitantes, muitos dos quais de origem cigana e cabo-verdiana. A cidade conhece-o por Tarrafal. À semelhança da antiga colónia penal, o BSJD tornou-se, devido talvez ao seu marcado isolamento, num "bairro de castigo", destino daqueles a quem fiscais camarários, arautos da política social do Antigo Regime, retiravam o direito de viver noutros bairros sociais. Assim, no imaginário da cidade e no do quem lá habitava, uma imagem estigmatizante, reforçada pela realidade que lá se vivia, foi-se consolidando ao longo dos tempos.
Ao longo da década de noventa, o Tarrafal foi-se estabelecendo como um dos principais "bairros de droga" da cidade. Inúmeras reportagens jornalísticas acorrem ao lugar para, num misto de denúncia social e sensacionalismo, exporem a tremenda gravidade do que lá se vivia. Imagens de toxicodependentes circulando entre vendas de drogas a céu aberto e autênticas lixeiras, levam o poder político que ascende à edilidade em 2002 a traçar-lhe rapidamente o diagnóstico: " o cancro da cidade" - de lá emanariam os vapores do Mal, contaminando a cidade sã e impoluta, sua iminente vítima. A sentença não tarda - "urge extirpá-lo". É então decidido "limpar a cidade".
Em Dezembro de 2002, é anunciado pela Câmara Municipal do Porto (CMP) o plano de reconversão do BSJD, cujo grande objectivo seria a sua requalificação urbanística e social. Inicia-se então um processo de demolição que viria a durar cinco anos - de Fevereiro de 2003 a Dezembro de 2008. Apenas lhe sobreveio a inicial centena e meia de moradias - agora como dantes, degradadas e esquecidas da cidade. Temos vindo a acompanhar o impacto desta operação, num trabalho de investigação no terreno. Constatámos como o decurso das demolições foi pautado por inúmeras incertezas e recorreu a métodos frequentemente vividos como muito violentos. Uma parte significativa da população do BSJD queixava-se da falta de informação de que dispunha, que chegava ao ponto de não saber se a sua casa seria demolida ou não, e se sim, quando é que seria e para onde iria."
Nas vésperas das primeiras demolições, poucas pessoas conseguiram dormir, o pânico pairava no ar. Muitos dos habitantes notificados por escrito pela câmara não sabiam ler, traziam a carta dos correios e pediam ajuda aos vizinhos. Quando vieram as máquinas para demolir os blocos, houve muita gente que resistiu, que se recusava a sair das casas. Uma das vezes vieram manhã cedo, algumas pessoas ainda estavam na cama. Subiram as escadas em fila indiana, com uma mão no ombro do do polícia da frente, gritando: "Ho! Ho! Ho! Entraram pelas casas adentro, vinham armados até aos dentes. Não deram tempo para tirar nada. Alguns polícias foram alvejados." (excertos de relatos de moradores).
Neste processo foram transferidas 430 famílias e despejadas outras 32 - estas essencialmente sob a justificação de que utilizavam a sua habitação para fins ilícitos. Para onde foram estas 32 famílias? A população deslocada refere frequentemente sentimentos de perda de laços de identidade e de solidariedade, perda de raízes e falta de sentimento de pertença. Afirmações como "Os imigrantes que estão lá fora podem vir morrer à sua terra. Eu não, a minha terra já não existe" (G., 64 anos, funcionário público) ou "Sinto que me cortaram as raízes"(A., 22 anos, estudante) ilustram bem a dimensão do fenómeno.
Entretanto, à medida que a CMP foi procedendo aos realojamentos, os locais de venda de drogas foram-se também deslocando, levando naturalmente ancorados a si os consumidores. Um dos bairros que acolheram talvez a parte mais significativa desta população registou, quase de imediato, um enorme incremento de venda e consumo de substâncias psicoactivas. "Resolvia-se" o problema do BSJD e criava-se outro na vizinhança. Acresce ainda que, escorraçados do bairro pela pressão policial e pela reacção dos moradores, muitos toxicodependentes debandariam para terras de ninguém na cidade abandonada, agravando ainda mais as suas condições de existência e interrompendo os laços com as equipas de redução de riscos.
Estas populações não têm voz - um grupo de toxicodependentes a viver num viaduto, numa fábrica ou numa casa abandonada, pode ser invisível. E por isso pode ser invocado o êxito da operação no BSJD. Mas com que preço? Que políticas sociais são estas? As da invisibilização daquilo que fere as nossas boas consciências de cidadãos médios? Saibam então estas boas consciências que os problemas das pessoas não desaparecem magicamente quando se fazem desaparecer blocos de cimento degradados pelos anos e espaços públicos marcados pelo estigma e pelo abandono. De nada serve reabilitar espaços se quem lá vivia, obrigado a sair, ficou ainda pior - porque à desesperança em que vivia se segue a violência dum desterro para outro bairro, sem que nada na sua vida tenha melhorado. As operações de renovação urbana só reabilitam espaços se reinserirem pessoas - senão as cidades são lugares vazios, vão perdendo a alma à medida que ignoram as pessoas. Precisa-se no Porto, precisamos nas cidades, de quem não confunda políticas sociais com invisibilização dos pobres, de quem não olhe para a habitação social pelo prisma da libertação de terrenos e da gestão contabilística....
(Público) 18.10.09 Luís Fernandes e Alexandra Oliveira Ramos
As operações de renovação urbana são um dos instrumentos fortes que a gestão política das cidades têm ao seu dispor. As cidades comportam-se como organismos vivos, que necessitam de intervenções no seu edificado e de medidas que assegurem aos seus habitantes mais e melhores condições de vida, que dependem largamente da qualidade do habitat urbano. As operações levadas a cabo nos centros históricos são talvez as mais emblemáticas, porque correspondem a uma espécie de intervenção cardíaca: intervêm no coração duma cidade, no lugar onde primeiro pulsou e que, pelos tempos fora, lhe mantém uma identidade feita do testemunho do que permanece. Outras operações intervêm em zonas que o resto da cidade olha com distância e, não raro, com receio: os "bairros sociais degradados".
O modo como uma dada autarquia intervém em zonas deste tipo define bem o que os seus dirigentes pensam sobre o que são políticas sociais. Tomemos um exemplo concreto: o Bairro de São João de Deus (BSJD), na periferia norte do Porto. Começado a construir em 1944, o último edifício será construído em 1994, fixando assim cerca de 5000 habitantes, muitos dos quais de origem cigana e cabo-verdiana. A cidade conhece-o por Tarrafal. À semelhança da antiga colónia penal, o BSJD tornou-se, devido talvez ao seu marcado isolamento, num "bairro de castigo", destino daqueles a quem fiscais camarários, arautos da política social do Antigo Regime, retiravam o direito de viver noutros bairros sociais. Assim, no imaginário da cidade e no do quem lá habitava, uma imagem estigmatizante, reforçada pela realidade que lá se vivia, foi-se consolidando ao longo dos tempos.
Ao longo da década de noventa, o Tarrafal foi-se estabelecendo como um dos principais "bairros de droga" da cidade. Inúmeras reportagens jornalísticas acorrem ao lugar para, num misto de denúncia social e sensacionalismo, exporem a tremenda gravidade do que lá se vivia. Imagens de toxicodependentes circulando entre vendas de drogas a céu aberto e autênticas lixeiras, levam o poder político que ascende à edilidade em 2002 a traçar-lhe rapidamente o diagnóstico: " o cancro da cidade" - de lá emanariam os vapores do Mal, contaminando a cidade sã e impoluta, sua iminente vítima. A sentença não tarda - "urge extirpá-lo". É então decidido "limpar a cidade".
Em Dezembro de 2002, é anunciado pela Câmara Municipal do Porto (CMP) o plano de reconversão do BSJD, cujo grande objectivo seria a sua requalificação urbanística e social. Inicia-se então um processo de demolição que viria a durar cinco anos - de Fevereiro de 2003 a Dezembro de 2008. Apenas lhe sobreveio a inicial centena e meia de moradias - agora como dantes, degradadas e esquecidas da cidade. Temos vindo a acompanhar o impacto desta operação, num trabalho de investigação no terreno. Constatámos como o decurso das demolições foi pautado por inúmeras incertezas e recorreu a métodos frequentemente vividos como muito violentos. Uma parte significativa da população do BSJD queixava-se da falta de informação de que dispunha, que chegava ao ponto de não saber se a sua casa seria demolida ou não, e se sim, quando é que seria e para onde iria."
Nas vésperas das primeiras demolições, poucas pessoas conseguiram dormir, o pânico pairava no ar. Muitos dos habitantes notificados por escrito pela câmara não sabiam ler, traziam a carta dos correios e pediam ajuda aos vizinhos. Quando vieram as máquinas para demolir os blocos, houve muita gente que resistiu, que se recusava a sair das casas. Uma das vezes vieram manhã cedo, algumas pessoas ainda estavam na cama. Subiram as escadas em fila indiana, com uma mão no ombro do do polícia da frente, gritando: "Ho! Ho! Ho! Entraram pelas casas adentro, vinham armados até aos dentes. Não deram tempo para tirar nada. Alguns polícias foram alvejados." (excertos de relatos de moradores).
Neste processo foram transferidas 430 famílias e despejadas outras 32 - estas essencialmente sob a justificação de que utilizavam a sua habitação para fins ilícitos. Para onde foram estas 32 famílias? A população deslocada refere frequentemente sentimentos de perda de laços de identidade e de solidariedade, perda de raízes e falta de sentimento de pertença. Afirmações como "Os imigrantes que estão lá fora podem vir morrer à sua terra. Eu não, a minha terra já não existe" (G., 64 anos, funcionário público) ou "Sinto que me cortaram as raízes"(A., 22 anos, estudante) ilustram bem a dimensão do fenómeno.
Entretanto, à medida que a CMP foi procedendo aos realojamentos, os locais de venda de drogas foram-se também deslocando, levando naturalmente ancorados a si os consumidores. Um dos bairros que acolheram talvez a parte mais significativa desta população registou, quase de imediato, um enorme incremento de venda e consumo de substâncias psicoactivas. "Resolvia-se" o problema do BSJD e criava-se outro na vizinhança. Acresce ainda que, escorraçados do bairro pela pressão policial e pela reacção dos moradores, muitos toxicodependentes debandariam para terras de ninguém na cidade abandonada, agravando ainda mais as suas condições de existência e interrompendo os laços com as equipas de redução de riscos.
Estas populações não têm voz - um grupo de toxicodependentes a viver num viaduto, numa fábrica ou numa casa abandonada, pode ser invisível. E por isso pode ser invocado o êxito da operação no BSJD. Mas com que preço? Que políticas sociais são estas? As da invisibilização daquilo que fere as nossas boas consciências de cidadãos médios? Saibam então estas boas consciências que os problemas das pessoas não desaparecem magicamente quando se fazem desaparecer blocos de cimento degradados pelos anos e espaços públicos marcados pelo estigma e pelo abandono. De nada serve reabilitar espaços se quem lá vivia, obrigado a sair, ficou ainda pior - porque à desesperança em que vivia se segue a violência dum desterro para outro bairro, sem que nada na sua vida tenha melhorado. As operações de renovação urbana só reabilitam espaços se reinserirem pessoas - senão as cidades são lugares vazios, vão perdendo a alma à medida que ignoram as pessoas. Precisa-se no Porto, precisamos nas cidades, de quem não confunda políticas sociais com invisibilização dos pobres, de quem não olhe para a habitação social pelo prisma da libertação de terrenos e da gestão contabilística....
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