sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Opinião de Filipe Luís (Visão)
Uma campanha Alegre

Para o PS, Alegre pode dizer o que lhe apetecer. De certo modo, até convém que diga
Há quase 20 anos, formavam-se as listas de candidatos a deputados para as legislativas de 1991. E Manuel Alegre era, alegremente, retirado de cena. Jorge Sampaio, então líder do PS, dispensava os serviços do homem que parecia ter, no círculo de Coimbra, uma espécie de feudo. Alegre era excluído. Numa explosiva entrevista, então concedida ao semanário O Jornal, vociferou, numa gorda manchete: «O PS tratou-me pior do que a PIDE!» Salvo seja, diríamos nós. Mas a frase, tonitruante, produziu efeitos: poucos dias depois, numa desculpa atabalhoadamente embrulhada no papel almaço de um alegado «lapso», o poeta-deputado era reposto na lista. A micropurga sampaísta recuava em toda a linha: Alegre não só entrava como candidato, como substituía, à cabeça da lista, a primeira escolha de Sampaio, o médico João Rui de Almeida. O mediatismo de Alegre, bem como o seu peso político, já então afirmado à margem da órbita soarista, dava cartas e mudava as coisas.
Manuel Alegre foi criando o seu próprio espaço. Um gesto seu abarca o mundo – e as câmaras. Narciso q.b., Alegre tomou consciência da sua força: convicções profundas, palavras cheias, uma voz grave, e aquele ar aristocrático-marialva que o povo venera, a esquerda respeita e as TVs vendem. O homem de Coimbra tem mais encanto naquela consistência duvidosa e na inconsciência poética que Jonathan Swift magistralmente retrata, na sua obra-prima As Viagens de Gulliver, quando descreve a «ilha dos sábios». A ameaça da formação de um novo partido, sob a égide do poeta, seria uma má notícia para o primeiro-ministro. Se não fosse uma não-notícia. Em teoria, depois do almoço que os juntou, no Guincho, tudo isto poderia ter sido combinado. Traduzindo-se a si próprio, Alegre forma um partido «se o PS se aliar à direita...» – depois das eleições! Objectivamente, tal ameaça até reforça a dramatização que pode levar à renovação da maioria PS. Nesta nova modalidade do congresso «Portugal: que futuro?», que foi o Fórum das Esquerdas, Alegre só disse: «Agarrem-me, senão vou-me a eles». Afinal, há ou não há almoços grátis?
Ironicamente, Alegre é indispensável a Sócrates. (Por exemplo, ele pode ter impedido uma segunda volta nas presidenciais, entre Cavaco e Soares. Ora, observando as políticas do Governo e o que delas pensa Soares, sabemos hoje o que teria dado uma eventual «coabitação» com Sócrates...) E é Alegre que pode continuar a servir de almofada ao primeiro-ministro: dentro do PS, «continuará vigilante», pronto a refrear os «desvios de direita». No fundo, Alegre é a melhor válvula de escape de um eleitorado que, pertencendo ao PS, lhe pertence, para já, a ele. Na verdade, pode dizer o que lhe apetecer. De certo modo, até convém que diga.
Se há partido que ficou verdadeiramente incomodado com o Fórum das Esquerdas, não foi o PS: foi o PCP. Por um lado, o fórum ameaçava tornar-se uma frente unitária que, a surgir, estaria, pela primeira vez, fora da alçada, do controlo ou da influência dos comunistas. Por outro lado, o PCP desconfia de Manuel Alegre – e pensa que o topa bem, como demonstra o discurso de Jerónimo de Sousa, no último conclave comunista. O PCP não tem memória fraca. E Alegre foi um instrumento implacável de que Mário Soares se serviu – e a sua mais sólida bengala – para derrotar os comunistas, no PREC. Se pudesse, o PCP tratá-lo-ia pior do que a PIDE. Salvo seja.

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