quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Entre a razão e o coração
(i), João Cardoso Rosas, 1.10.09
Recorde-se que o mandato do actual Presidente da República começou com solenes promessas de "cooperação estratégica" com o governo do PS e que, durante os primeiros tempos da governação de Sócrates, essa cooperação foi exemplar. Mas aquilo que tornava possível esse estado de coisas era, além do ímpeto reformista do governo, com o qual o Presidente se identificava, o facto de o PSD ter lideranças que desagradavam a Cavaco Silva. Ou seja, era fácil para o Presidente apoiar o governo do PS quando o partido a que o próprio Cavaco Silva se sentia mais ligado enveredava por caminhos que ele reprovava. A facilidade de relacionamento entre Belém e S. Bento variava na razão directa do desgosto do Presidente em relação às lideranças do PSD. Porém, tudo isso mudou com a eleição de Manuela Ferreira Leite para presidente do partido.Com Ferreira Leite a imprimir um cunho "cavaquista" à liderança do PSD, o Presidente passou a encontrar menor incentivo para a cooperação com o governo do PS. Foi nessa altura que se desenrolou o "drama" do Estatuto dos Açores. Simultaneamente, com o aproximar do fim da legislatura e a necessidade de responder de forma rápida à crise internacional, o próprio governo tornava-se menos cooperante e lançava políticas ad hoc que desagradavam profundamente ao Presi- dente. A desconfiança de Belém em relação a S. Bento foi em crescendo. Em termos institucionais, o Presidente manteve a cooperação com o governo, mas notava--se maior proximidade em relação ao principal partido da oposição (por exemplo, na necessidade de fazer um "discurso de verdade"). A cooperação estratégica do Presidente mantinha-se pela "razão" de Estado, mas era constantemente torpedeada pelo "coração" político.
O caso das escutas mostra como o Presidente permanece dividido entre a razão e o coração.
Por um lado, quer sinceramente manter a cooperação estratégica que prometeu aos portugueses, assim como a sua isenção enquanto titular do órgão de soberania que é o Presidente da República. Daí ter adiado uma intervenção pública sobre o assunto. Cavaco Silva não falou antes para não ser acusado de favorecimento ao PSD. Por outro lado, o Presidente tem um desejo irreprimível de vincar a sua distância em relação ao PS e ao seu governo. Daí a violência verbal da comunicação de terça-feira, acusando o PS de forjar o episódio lateral da suposta colaboração dos seus assessores na feitura do programa do PSD (acrescentando embora - o que gera "ruído" na mensagem - que isso não seria crime). Nesta comunicação presidencial, o coração acabou por triunfar sobre a razão.Quanto à única coisa que interessava e não era lateral - as escutas -, os portugueses ficaram a saber que não há provas nem indícios de que alguma vez tenham ocorrido, mas que o Presidente continua a desconfiar delas. Ou seja, a razão do Presidente sabe que não há escutas, mas o seu coração deseja-as.

Sem comentários: