domingo, 13 de setembro de 2009

Jorge de Sena
A Noite que Fora de Natal (Extracto)
Antigas e Novas Andanças do Demónio
Edições 70

...Na grande sala, iluminada por archotes fumarentos, Marco Semprónio passou devagar por entre os coxins dispersos, alçou cuidadosamente as pernas por sobre um escravo estendido e nu, que já devia estar morto, e reclinou-se, alargando o manto, ao lado do imperador. O olhar vagueou-lhe do rosto envelhecido do César para outro escravo também nu que, em frente deles, pendia, pelos pés, de um varão de ferro, com as pontas dos dedos a roçarem de leve o mármore do pavimento.
Mais uma vez Marco Semprónio verificou que um corpo de homem, assim suspenso e exangue, tinha uma beleza estranha, que não teria noutras circunstâncias, por belo que fosse. E aquele era-o. As imagens que haviam flutuado na noite, além do parapeito, configuravam-se agora na recordação daquele corpo vivo, vigoroso, jovem, tão submisso e hábil, e que ele próprio cedera ao imperador. Apurando a vista, examinou-o minuciosamente, e deteve os olhos no pequeno golpe no pescoço, de onde, escorrendo em fio pela cabeça acima — sorriu da inversão dos termos que a suspensão impunha —, o sangue pingava escuro para uma bacia de prata entre as mãos pendidas. Um instante apenas, meditou em porque esquecera a bacia, a não vira quando se sentara, mas às mãos, mais nada. Por certo as mãos pareciam vivas, e é que estavam ainda vivas. Sentiu um saboroso arrepio, uma saudade antecipada e agradável daquelas mãos que morriam. Suspirou.
O imperador dormia, respirando tranquilo, ridiculamente descomposto, e no chão estava o punhal sujo de sangue. Marco Semprónio curvou-se, apanhou o punhal, limpou-o na túnica de Tibério, pousou-o novamente no chão, e levantou-se. Olhando de esguelha o imperador, bateu palmas. Dois escravos surgiram com uma pedra e uma corda, que amarraram aos pés do cadáver por cima do qual passara Marco Semprónio. E, carregando-o, saíram para o terraço. Marco Semprónio aguardou, de pé, sem olhar o imperador, que eles voltassem, e fê-los desaparecer com um gesto.
Tornou a sentar-se, meio recostado. E divertiu-se a examinar o imperador, que, pelos fugidios brilhos que entrevia nos seus olhos semicerrados, agora fingia dormir. Como estava velho, cheio de refegos no pescoço e no corpo! Como parecia um sileno emagrecido e exausto! Como as rugas e as peles pendidas das faces pareciam com o seu peso esticar mais a pele do crânio, que brilhava suada sob o cabelo ralo! Como o nariz parecia uma tromba ou um sexo, e como o sexo parecia um nariz!
Fingindo solicitude e carinho, desenvencilhou-se da sua capa, e com ela cobriu o imperador.
Tibério abriu os olhos, sorriu-lhe, acomodou-se melhor sob a capa. Os lábios finos e descaídos, que pareciam esvaziados do que haviam sido de carnudos, entreabriram-se.
—Obrigado, Marco Semprónio. Que seria de mim sem os teus cuidados?
Marco Semprónio baixou modestamente os olhos, e disse:
— Bem sabes, César, que a vida para mim não vale senão ao teu serviço.
— E não é fácil servir-me, não é fácil — e a voz tornou-se-lhe amarga para acrescentar: — Se até eu estou farto de servir-me! — e depois, com humor, continuou: — Mas também há quase setenta anos que me aturo e tu, Marco Semprónio, há dez apenas.
— É como se tivesse sido ontem.
— E é verdade, porque te estimo. Mas igualmente é verdade, porque, nesta ilha e neste palácio, tu e eu suprimimos o tempo. Graças a nós, o tempo não passa. Ou passa como as ondas sempre iguais e que são sempre outras com o mesmo mar. Não temos, nesta ilha, rios, Marco Semprónio. E os rios é que são o tempo que passa. Quando agora mandaste deitar ao mar o escravo cuja morte algum prazer me deu, tão pouco, eu claramente senti como aqui nem com a morte o tempo passa. Ou não passa precisamente porque é morte. Repara, Marco Semprónio, naquele sangue que pinga. É como se a vida se esgotasse na água que pinga na clepsidra, e a morte se esgotasse, e com ela o tempo, naquele sangue que escorre, gota a gota, de uma clepsidra humana que voltámos. Quando o sangue pulsa em nossas veias, ele é o tempo que passa. Quando escorre assim, é o tempo que fica.— Mas Cesar, porque não abres as tuas veias, para que, com o teu sangue, o tempo acabe?
Os olhos de Tibério olharam ironicamente Marco Semprónio.
.....
Araraquara, Dezembo de 1961

2 comentários:

Primo de Amarante disse...

É um dos homens que nos faz falta. Hoje a mediocridade, a trapeirice, um primeiro ministro que conjuda o geverno na primeira pessoa e, agora, diz,paradoxalmente, que no próximo governo não integrará nenhum dos actuais ministos. Não se percebe, por que terá ele de o integrar, se, como já se disse, para ele o governo é ele, (ele é que faz o melhor, ele é que tudo tem feito para resolver, ele, ele, ele,)o primeiro. Faz-nos lembrar o video Socratesversocrates (http://www.youtube.com/watch?v=_vuZlAsR8VY) o que melhor caracteriza a personalidade desta gente a kilómetos de distância de Jorge de Sena

Vai de Vela disse...

Ele nem diz que não integrará nenhum dos actuais ministros, diz que em todas as pastas haverá ministros novos, o que quer dizer que poderemos ter a Lurdes na Saúde e o Béria Santos Silva na Admnistração Interna e até poderá ir buscar o Papa Maizena para a Cultura pois claro enquanto o Pinto Ribeiro vai para as Finanças, pro caso vai dar ao meso porque o que conta é ele o problema é se é ele que vai á vida que é o que vai acontecer mesmo que tenha mais votos que o PSD, porque a sua incapacidade para o jogo democrático levará o PS em caso de ter mais votos a mudar de secretário-geral uma vez que a fasquia da vitória foi posta por ele mesmo na maioria absoluta. Se tiver menos votos que a FL será logo corrido mais a cambada dele. Em qualquer dos casos destruir uma maioria absoluta como o PS nunca teve em 4,5 anos e levar a sua esquerda aos 20% ou mais, é obra, só mesmo José Sócrates e sua comandita de crãneos vasios, Pedro Pereira, Santos Silva, conseguia.