quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Para além do voto
Manuel Maria Carrilho(DN) 10.9.09
A mudança é esta: hoje, a noção de maioria perde valor, a noção de mandato perde consistência, as eleições tendem a não ser mais do que um processo de designação dos governantes.
A agenda política dos próximos tempos é extremamente exigente. Devido à crise que vivemos e ao facto de, ao contrário do que seria de prever, a polarização ideológica não se ter acentuado com o desenrolar da crise.
E não se acentuou porquê hoje não só não se dispõe de nenhum modelo económico alternativo ao capitalismo, como o socialismo perdeu o elemento que sustentava e dava coerência às suas causas fundamentais (igualdade, solidariedade, etc.), e que era a crença no progresso.
Essa crença, que nascera no século XVII e que desde então dinamizou todos os impulsos de emancipação, dissipou-se no século XX. Primeiro com as grandes catástrofes humanas (holocausto, guerras), que puseram em causa a sua realidade, e depois com a globalização e as transformações financeiras do capitalismo, que estropiaram o seu sentido.
Perdeu-se a confiança numa evolução positiva do mundo. Desapareceu a certeza que o dia de amanhã será melhor do que o dia de hoje. Deixou de haver finalidades mobilizadoras para a humanidade, e o pessimismo e os princípios "de precaução" multiplicam-se por todas as áreas, a comprová-lo.
Com tudo isto, a esquerda e a direita como que trocaram de papéis. A esquerda perdeu a sua inspiração optimista e as suas genéticas ambições de mudança, que foram tomadas pela direita e reconfiguradas à luz dos objectivos do capitalismo financeiro.
Isto deixou a esquerda atada a um conservadorismo defensivo, que se define por intenções sociais de natureza mais reparadora do que verdadeiramente reformista. Como se o mundo se tivesse tornado num lugar perigoso e desamparado, e um misto de consolo e de reparação fosse tudo aquilo que hoje se pode proporcionar às pessoas. Daí que a esquerda procure agora na fracturante "agenda dos direitos" (casamentos gay, eutanásia, etc.) uma nova compensação para as suas dificuldades mais estruturais, num remake do que já acontecera com o tema europeu nos anos 80 e 90 do século passado.
Entretanto, o sentimento que mais se generalizou na relação dos cidadãos com a política e com os governos foi o da incapacidade do poder.
A descredibilização que atinge a política não é pontual nem subjectiva. É um processo que ultrapassa as circunstâncias, os partidos e as personalidades. E que radica na constatação quotidiana que os políticos, seja qual for a sua ideologia, não são capazes de resolver os principais problemas do mundo, seja no domínio do emprego ou da saúde, da educação ou da finança.
Isto afecta profundamente a democracia, quer na forma como as pessoas a avaliam quer na forma como as pessoas participam nela. E atinge, fragilizando-o, o instrumento a que se pretendeu reduzir a de- mocracia: o voto, as eleições.
Contudo, esta fragilização do voto não deve ser vista como um inevitável empobrecimento da democracia. São vários os estudos (nomeadamente os de Pierre Rosanvallon e da sua equipa) que têm mostrado que ela deve antes ser entendida na perspectiva do seu efectivo enriquecimento.
É que - e este aspecto é importante - o desgaste da relação representativa e a erosão da confiança nos eleitos não têm sido acompanhados por um maior desinteresse ou uma maior apatia por parte dos cidadãos. Pelo contrário, tem-se assistido à emergência de novos comportamentos políticos que visam revitalizar a democracia, com actos que ora são de mera avaliação crítica, ora se pretendem de vigilância mais escrutinadora, ora se assumem de bloqueio comprometido. De tudo isto temos tido em Portugal, nos últimos anos, uma variada e interessante experiência.
O que importa, agora, é articular estes diversos elementos numa nova compreensão da democracia, que acolha toda a sua complexidade contemporânea e reforce a sua legitimidade. Este reforço implica um passo muito preciso: compreender e desmontar a ficção que levou à identificação (tão automática quanto infundada) da maioria com a vontade geral, como se fossem a mesma coisa, como se o maior número de votos pudesse valer, sem atritos ou controvérsia, pela sua totalidade.
Para se revitalizar a democracia é preciso ver que o seu ponto fraco - que tem sido um ponto cego - está antes do mais aqui, no modo como tradicionalmente se estabeleceu que a parte vale pelo todo. E, depois, no corolário que estabeleceu que o momento eleitoral vale para toda a duração do mandato.
Isso acabou. Os cidadãos das democracias do nosso tempo sacodem cada vez mais esta dupla ilusão. E, neste processo, tudo muda: a noção de maioria perde valor, a noção de mandato perde consistência, e ambas perdem sentido, o que transforma as eleições num mero processo de designação dos governantes.
Vale pois a pena, especialmente no actual contexto político nacional, ganhar alguma distância em relação à "espuma dos dias" e reflectir sobre estas mudanças, que traduzem um alargamento da afirmação do individualismo contemporâneo, nomeadamente em tudo o que se refere ao comportamento político dos cidadãos.
Um alargamento que traz consigo novas formas de legitimidade que é preciso acrescentar à legitimidade eleitoral - desde logo aquela a que se pode chamar uma legitimidade "de proximidade", que é exactamente onde cada vez mais se faz e desfaz a relação de confiança entre o poder e os cidadãos.
São muitos os factores que hoje tornam a actividade política extraordinariamente difícil: a globalização e a perda de soberania das nações, o individualismo e a erosão da representatividade, a mercantilização da informação e a sua tabloidização.
Não falta quem pense que estes, como outros factores (a desideologização das sociedades contemporâneas, a intensificação quase religiosa do consumo, a absorção do futuro no curto prazo, a hegemonia financeira da vida económica, etc.), inviabilizam a política, condenando os que a praticam a um papel de desesperados ou inconscientes bodes expiatórios de uma sociedade que, na verdade, parece que desistiu de se compreender a si própria.
Com todas estas dificuldades, a margem de manobra tornou-se de facto muito estreita. Mas essa margem existe, desde que - e este é o ponto fundamental - se corte com a tentação vanguardista que, tanto à direita como à esquerda, continua a pensar a política como se ela estivesse acima, ou à frente, da sociedade. Até porque, se alguém vai à frente, é claramente a sociedade, não é a política.
Esta visão "heróica" da política (como inspiradamente lhe chamou Daniel Innerarity) deve ser abandonada, porque bloqueia todas as articulações vitais com a sociedade. Temos de substituí-la por uma concepção aberta e audaz, que abrace o pulsar das ideias em vez de se agarrar à aridez ideológica, que troque a obsessão dos consensos pelo acolhimento da diversidade, que abdique de pretender dirigir a sociedade sem, claro, desistir de influenciar o seu caminho e o seu destino.
Goste-se ou não, é esta a direcção que as democracias contemporâneas têm seguido. Por isso, as lideranças do futuro terão de resistir à armadilha do voluntarismo, seja na forma que conduz a contraproducentes provas de força com a sociedade seja quando ele se refugia num qualquer tipo de determinação mais ou menos iluminada.
São outras as qualidades que se requerem aos reformadores do nosso tempo. Acima de tudo, o que conta é mostrar capacidade de composição com a própria sociedade: na sua diversidade, na sua fragilidade e na sua complexidade. Não só porque o voluntarismo afasta e exclui, enquanto a composição motiva e integra, mas também porque só assim se consegue criar o espaço de manobra necessário para lidar com os problemas do nosso tempo.
Obama compreendeu isto, Sarkozy não. É o que faz do primeiro um líder inspirado, capaz de abrir novos caminhos, e do segundo um líder perdido num labirinto de impulsos e de incoerências. E talvez este exemplo ajude a compreender o essencial: é que, se o reformismo é - e é de facto - uma arte muito difícil, ele tem contudo um segredo. E esse segredo está em conseguir construir ao mesmo tempo que se corta, em combinar a visão e o detalhe, o global e o sectorial, o longo prazo e o imediato.
Tudo isto são coisas que talvez não se decidam em campanhas eleitorais. Mas é nelas que se começa a perceber se alguém - e quem - tem a chave deste segredo. Como nas próximas semanas certamente os Portugueses irão perceber.

2 comentários:

M. Araujo disse...

"...São outras as qualidades que se requerem aos reformadores do nosso tempo. Acima de tudo, o que conta é mostrar capacidade de composição com a própria sociedade: na sua diversidade, na sua fragilidade e na sua complexidade. Não só porque o voluntarismo afasta e exclui, enquanto a composição motiva e integra, mas também porque só assim se consegue criar o espaço de manobra necessário para lidar com os problemas do nosso tempo..."

Parece-me que este pedaço da crónica, sem o ser, de Carrilho, traduz uma larga percentagem de verdade e ao mesmo tempo, branda sobre a questão mais badalada neste sitio. Aquilo que se vem dizendo, comentando e até criticando representa a "complexidade, diversidade e fragilidade" de e que é composto o pensamento global. Compreendido isto, estará por certo encontrado o caminho que restitua a esperança perdida por via da utilização abusiva do Pensamento Iluminado.

Primo de Amarante disse...

Há quem diga:

«Na próxima semana os telejornais prometem. As sondagens indicam que o Bloco Central terá o pior resultado de sempre. Veremos onde fica agora a isenção. O termos usados por alguns editores e subdirectores tornam claro o que está em jogo. Agora se verá a maturidade democrática da nossa comunicação social».