"Ou eu ou o caos", Parte II
(Público) 09.03.2009, Teresa de Sousa
Ninguém deve compreender melhor José Sócrates do que Cavaco Silva. Dei por mim a pensar nisto enquanto lia e ouvia - a alguma distância mental, confesso - os relatos do XVI Congresso do PS e os respectivos comentários. As palavras-chave da narrativa ecoavam na minha memória. A "desertificação" do PS, a morte das "sensibilidades", o "unanimíssimo", a arrogância do poder "absoluto", a radicalização política do "eu ou o caos". Estavam a falar sobre Sócrates ou sobre Cavaco?
(Público) 09.03.2009, Teresa de Sousa
Ninguém deve compreender melhor José Sócrates do que Cavaco Silva. Dei por mim a pensar nisto enquanto lia e ouvia - a alguma distância mental, confesso - os relatos do XVI Congresso do PS e os respectivos comentários. As palavras-chave da narrativa ecoavam na minha memória. A "desertificação" do PS, a morte das "sensibilidades", o "unanimíssimo", a arrogância do poder "absoluto", a radicalização política do "eu ou o caos". Estavam a falar sobre Sócrates ou sobre Cavaco?
Vivi, ainda no Expresso, cada minuto da campanha eleitoral de 1987, que deu ao Presidente a primeira maioria absoluta. Fiz a de 1991, no PÚBLICO, já limitada a algumas incursões breves ao terreno. Estive em dezenas de Conselhos Europeus em que participou. Vi-o vezes sem conta actuar no Parlamento. O guião das campanhas era simples: ele e o povo. Ele, transportado num andor por uma máquina sem falhas, o palco e o povo. E essa corrente magnética (que se sente, não se explica) que se estabelece entre alguns (raros) políticos e as multidões. Por cima das nossas cabeças. Cavaco não lia jornais (ou, pelo menos, era o que dizia): a sua relação com a imprensa era distante, tensa e difícil. O discurso era básico, repetitivo e eficaz. "Ou eu ou o caos" despido de qualquer roupagem. Brutal? Adequado. Os portugueses, finalmente europeus (graças ao euromilhões que Soares lhe deixou de presente, a ele e ao país, e que só mais tarde agradeceu), entregavam-se aos primeiros prazeres do seu novo estatuto burguês. O "caos" construía-se ainda em torno do risco de perder coisas como o automóvel e os electrodomésticos (sim, não me engano, electrodomésticos). O novo-riquismo era a aspiração do momento.O "capitalismo popular" que Cavaco roubou à sua heroína Margaret Thatcher (que haveria de substituir por Delors e González) tinha finalmente o seu grande intérprete. Não precisava de ideologias nem de concessões. Era assim, em toda a sua nudez e com toda a sua eficácia. Ele e o povo. Partidos? Parlamento? Rituais democráticos por vezes incómodos.
Escreveu-se muito sobre ambos, Cavaco e Sócrates. Pragmáticos. Implacáveis quando se trata de vencer. Pouco tolerantes à "maçada" dos partidos.
São também muito diferentes. Cavaco entrou de rompante na política envergando as vestes do outsider num país cansado da política. Sócrates vem de dentro da política, da democracia consolidada e europeia, de outra geração. Tem uma situação menos invejável. Se o PSD confunde a sua história com a dos seus chefes, vive por eles e definha sem eles, o PS tem uma "alma" - as raízes históricas, verdadeiras ou mitificadas -, que pode ser sempre invocada para questionar o líder. E tem uma tarefa mais difícil: radicalizar a importância da "estabilidade" num país mais europeu com uma imprensa muito mais diversificada e plural.
E uma crise tão brutal que questiona todas as verdades que ainda ontem tínhamos como certas.
Regresso à casa de partida: ninguém o compreenderá tão bem como Cavaco.
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