(Público) 25.09.2008, Luís Miguel Queirós
Não sei precisar a data, mas deve ter sido em 1989. Eu estava a jantar, sozinho, numa tasca da zona da Boavista, no Porto. Além de mim, só havia outro cliente, que me chamara a atenção porque, tal como eu, estava a ler um livro de poemas enquanto comia. Que a coincidência também o interessou tornou-se manifesto quando se levantou, se dirigiu à minha mesa e, sem quaisquer preâmbulos, atirou: "Tens olhos de poeta." A abordagem pareceu-me inquietante e, confesso, foi com alguma relutância que o convidei a sentar-se. Mas a conversa posterior deve ter-me tranquilizado, porque o levei para casa e, pelas três da manhã, estava a ouvi-lo dizer de cor os 168 versos da Tabacaria de Fernando Pessoa. Quando lhe chamei um táxi, e tendo em conta que eu próprio já então os utilizava diariamente e conhecia todos os motoristas da zona, preferia que não tivesse insistido em despedir-se de mim, dando-me, à porta de casa dos meus pais, sucessivos beijos no pescoço. Ainda assim, reconfortou-me pensar que sempre era uma sorte que ele fosse bastante mais baixo do que eu. A personagem chamava-se Joaquim Castro Caldas. Como fiquei a saber nessa noite, era uma ovelha algo tresmalhada de uma família tradicional, que até fornecera um ministro ao Estado Novo. Tinha caído de pára-quedas na anódina noite portuense, vindo de lugares bastante mais animados, como Paris, onde convivera com Leo Ferré, ou Veneza, onde afirmava ter guiado uma gôndola e cantado o fado. Agora, explicou-me, dera-lhe para se radicar no Porto e, às segundas-feiras, organizava umas sessões de poesia no Pinguim. Uma coisa suficientemente insólita para me despertar a curiosidade, nesse tempo em que éramos governados por um sujeito que não sabia quantos cantos tinham Os Lusíadas. Num ambiente escuro e enfumarado, sete ou oito pessoas ouviam o Caldas - chamei-lhe sempre assim, embora não se cansasse de me frisar que o nome dele era Joaquim - dizer poemas de Rimbaud (em francês), Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, Herberto Helder ou Mário Henrique Leiria, mas também dele próprio ou de poetas muito novos, às vezes sem livros publicados. Tinha ao seu lado um grande baú donde ia tirando livros e papéis. Depois era a vez de a assistência se chegar à frente. Tanto surgia alguém a tentar imitar Villaret a dizer A Duquesa de Brabante, como um adolescente a gaguejar o poema que escrevera nesse mesmo dia. E quase sempre aparecia um senhor com idade para ser pai da restante fauna, que tinha uma bela voz e recitava em castelhano o Llanto por Ignacio Sánchez Mejías, de Lorca. A qualidade do que se ouvia era deveras desigual, mas o ambiente era único. Foi isso que tentei dizer quando escrevi uma notícia a divulgar estas sessões, que saiu no primeiro número do PÚBLICO, de 5 de Março de 1990. Ao lado de uma fotografia de Joaquim Castro Caldas com um livro à frente dos olhos e um copo de cerveja à ilharga, lia-se o título "Pinguim: poesia à queima-roupa". Quando as Segundas-Feiras de Poesia se tornaram um pequeno sucesso de público, com pessoas até sentadas no chão de cimento, nem por isso deixaram de se manter iguais a si mesmas. Mérito do Caldas, que, apreciasse mais ou menos o género, era um artigo genuíno. Não o estou a ver, por exemplo, a promover um José Luís Peixoto. Talvez lhe dissesse que tinha olhos de poeta, mas não lhe dedicaria uma sessão.
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