domingo, 25 de maio de 2008

"PS e PSD são duas alternativas à mesma coisa"

Entrevista ao ensaísta Eduardo Lourenço; por João Marcelino (DN) e Paulo Baldaia (TSF).

O senhor vive em França. Vieira da Silva também aí viveu e acabou francesa. José Saramago vive em Lanzarote. Estas opções têm algum significado colectivo ou são apenas produto de circunstâncias pessoais?
No meu caso, verdadeiramente, é um acaso.
Mas que nasceu de um descontentamento?
Não, fez parte de um percurso universitário não terminado em Portugal. Pedi uma bolsa de leitor [de português], para ir lá para fora, e a partir daí nunca mais regressei.
Nunca teve vontade de regressar a Portugal, depois dessa saída em 1954? Várias vezes, ou sempre, para dizer a verdade.
Mas construí a minha vida lá fora, a académica por um lado, a familiar por outro, a partir do meu casamento com uma senhora francesa, que era professora. A partir daí as coisas encadearam-se e nunca, salvo no 25 de Abril. Aí tive muitas sugestões para regressar, e talvez fosse o momento. Mas já tinha perdido um pouco o pé em relação ao país, sobretudo não tinha sequer um sítio, um poiso, como se diz, e era muito difícil. Em todo o caso, a coisa não aconteceu. Sabe, Eu nasci numa aldeia do distrito da Guarda, chamada S. Pedro do Rio Seco, que se encontra entre Vilar Formoso e Almeida. O meu sítio matricial é essa pequena aldeia, de fronteira, perdida no mundo, um pouco excêntrica em relação com o espaço português.
São constantes as suas análises ao País. É mais exacta a visão de quem está distante?
Quando, depois do 25 de Abril, eu comecei a ter uma intervenção nos meios de comunicação, em alguns jornais, e naqueles famosos dois anos depois da revolução das flores, os meus amigos diziam: "Ele tem a vantagem de ver o jogo de fora."
E é verdade isso?
Não sei. Os leitores é que podem dar resposta a isso. Depois, quando veio o 25 de Novembro, eu estava exactamente na mesma linha que tinha defendido durante o famoso "Verão Quente". Então disseram assim: "Ah, mas você não está cá, não assistiu a isso." Uma parte da inteligência do País, naquela altura, fez uma certa viragem e, portanto, eles viam-me mais à esquerda. Na verdade, a coisa ia mútua, eles é que tinham passado para a direita, eu estava no mesmo sítio. Então atribuíram isso ao facto de eu estar lá fora. Bom, de resto, o estar lá fora nem sempre é uma vantagem. Passamos a ser os "estrangeirados", quer dizer, alguém que perde um pouco o contacto com a Pátria, sobretudo a inscrição cultural. Passa a ser um pouco suspeito. "Estrangeirado" não é um elogio, senão na boca de alguns que acham que eles estão mais ao corrente da massa das ideias. O discurso português sobre Portugal é muito autocentrado, um pouco como os judeus. Há nós e os outros. E os outros são o mundo inteiro, até os "estrangeirados".
85 anos é uma idade própria para fazer um balanço da sua vida ou acredita que ainda lhe falta viver momentos importantes?
Os 85 não são uma idade própria para nada, senão para descansar e nos retirarmos realmente de cena, ou da pouca cena, que nos pertence. Mas eu fiz esse balanço automaticamente, sistematicamente, há muito tempo. Fui fazendo. Está satisfeito com a sua vida? Assumo-a.
Disse uma vez que a única coisa que fez na vida foi plantar um conjunto de ciprestes à volta da sua casa, em França. Em que lugar coloca, então, toda a obra que escreveu ao longo da vida?
Quero eu dizer que, de facto, desde muito cedo a minha actividade é aquilo que se chama uma actividade fundamentalmente intelectual. E quero dizer que eu, neto de lavradores, filho de um homem que saiu desse círculo da terra e foi oficial do exército, descolei muito cedo dessa ligação. É uma espécie de traição às minhas raízes e aos meus antepassados, que durante centenas de anos não fizeram outra coisa senão estar ligados à terra, a trabalhar, numa perspectiva de mera sobrevivência, como era, de resto, a da maioria do País. A sua obra estava um pouco dispersa e, neste momento, está a ser reeditada em Portugal pela Gradiva.
Tem acompanhado esse processo? Agrada-lhe reunir numa só editora tudo aquilo que foi publicando ao longo da vida?
Sim, foi-me oferecida num certo momento essa hipótese, pelo meu amigo Guilherme Valente [dono da Gradiva]. Aceitei-a e estou contente com o trabalho que eles fazem, a que não concedo uma importância assim muito particular. Não tenho tempo. E também, como na Gradiva, pelos vistos, não têm lá pessoas que zelem particularmente pelas edições, aparecem com muitas gralhas. Mas a culpa não é deles, a culpa é minha.
Algum dia irá publicar o seu diário?
Não, [com] esse famoso diário, o problema é o seguinte: neste momento eu não sei onde é que ele pára. Estou mesmo a pensar que já o perdi. E, provavelmente, não se perdeu nada, não é nada de especial. Mas alguma vez o começou? Não era um diário num sentido. Diário é uma coisa incompatível com a minha maneira de ser, porque supõe persistência. Um diário é diário. Um livro de anotações sobre a sua vida? Por exemplo, o do Miguel Torga, a cada três anos apresentava uma súmula do percurso dele, não é? É preciso ter, de facto, uma paciência, uma constância, que não é aquilo que realmente me caracteriza. De maneira que, [no meu caso,] esse diário eram reflexões que se acumulavam sem preocupação cronológica.
Foi publicado, há poucos dias, um livro, de Miguel Real, que percorre algumas décadas da sua biografia. Isso é sinal de quê? De que, mesmo estando longe, Portugal não o esquece? Como é que interpreta esse trabalho?
Bom, é uma outra geração. É uma geração nem de filhos, é já de netos, que ele é jovem.
Agrada-lhe a lembrança?
Claro que, para um autor que está lá fora, autor de uma obra que não é de fácil abordagem, ter uma geração, outra, mais nova, que ainda se pode interessar por aquilo que fez, escreveu, reflectiu, é a maior compensação que se pode ter. Não são discípulos, mas é gente que nos lê. E nós só existimos através do olhar dos outros.
Foi para o estrangeiro na década de 50 e depois, no final da década de 70, publicou o seu livro, Labirinto da Saudade, no qual fazia um retrato do País como alguém que não estava assim tão distante de Portugal. Como se informava, quem o informava?
Bom, não estando em Portugal, todos os anos, praticamente, vinha a Portugal. Falava com os amigos, ia-me informando do que se passava. Havia, naturalmente, a informação, as imagens, os ecos, lá fora. E, portanto, não estava totalmente desinformado. Por outro lado, muita dessa reflexão era-me fornecida pelos pequenos sumários, notícias. Os discursos dos chefes, naturalmente. Tudo isso, eu ia lendo, sempre, para saber o que é que se passava aqui neste País que era o meu. "O Labirinto" foi escrito, quando estava no Brasil, motivado pela ideia de que estávamos no auge de um dos grandes fenómenos, talvez o maior do século XX, que foi o da descolonização. E como nós tínhamos colónias a que, na hora da aflição, chamámos províncias, eu pensava que Portugal não podia ficar imune a esse...
Movimento?...
A esse fim do colonialismo em África e noutras partes do mundo, particularmente na Ásia. E que viria a nossa hora. Portanto, eu estava no Brasil, em 1958, e comecei, nessa altura, com um tipo de reflexões sobre o destino, o nosso colonialismo. E quando veio 61, efectivamente, não foi nenhuma surpresa para mim. Mas, nessa altura, eu não podia publicar aquele tipo de reflexão sem abdicar de vir a Portugal. E eu disso nunca abdiquei. Não era um militante por conta própria ou por conta de algum partido. Não tinha nenhuma espécie de importância política que me colocasse nesse papel. Era a título puramente privado que eu fazia essas reflexões. Esse texto, que nunca foi publicado, de resto, chamava-se "Rebelião africana e consciência nacional". Foi o núcleo de onde saiu mais tarde o "Labirinto da Saudade". Se eu o publicasse não poderia.
Voltar a Portugal?
...Sim. E naquela altura ninguém tinha ideia que dali a uns anos o regime pudesse terminar.

"Ninguém tinha." Nem o senhor?
Daquela maneira, não. Bom, imaginava que ele terminaria, algum dia, de alguma maneira. Não nítido, sobretudo para quem estava de fora, que algum dia aquele regime provinciano teria de acabar?Sim, sim. Não sei se seria mais nítido porque, contrariamente àquilo que as pessoas pensam, o regime não tinha uma imagem de marca muito negativa lá fora. Soube fazer a sua propaganda. E, sobretudo, soube fazer uma viragem, por exemplo, que a Espanha não podia fazer, por causa daquele contencioso enorme da guerra civil. Mas nós entrámos tranquilamente na OTAN, portanto fomos aceites. Quando começou a Guerra Fria propriamente dita, logo em 1947, com o famoso discurso do Churchill, Portugal ficou do bom lado. Ficou sob uma protecção tácita de umas democracias, por razões de ordem política, naturalmente, e sábia manobra. E de uma certa ocultação. Nós não éramos uma das nações mais importantes da Europa. Quis cultivar-se aqui uma ditadura mais ou menos doce, ou mais suave, do que as outras, e isso não aquecia nem arrefecia as democracias, de Inglaterra, de França ou outras. Com a guerra de África é que começou, de facto, um problema. Primeiro para nós; e depois que se via do estrangeiro. E no qual o estrangeiro já estava interessado.
O senhor é um estudioso de Portugal e da portugalidade, mas gostávamos de aproveitar para lhe colocar algumas questões sobre a actualidade portuguesa. Por exemplo, confrontou-se há pouco tempo com a aprovação, na Assembleia da República, do Acordo Ortográfico. Como é que vê este novo português que aí vem?
Não me interesso muito por esse género de questões, não tenho a competência mínima...
É irrelevante para si esta questão?
Irrelevante não será, mas não tenho os elementos para poder julgar de uma maneira muito séria essa questão. Apesar de tudo, assinei, realmente, com outras pessoas, o manifesto contra [o Acordo Ortográfico]. O que eu penso é que não é necessário esse acordo. A prática linguística brasileira far-se-á segundo os termos em que está a ser feita e a nossa também continuará a fazer-se. Talvez só para documentos oficiais.Mas não considera relevante encontrar um denominador comum entre o português que se fala na América do Sul, na África e na Europa?
Tem conhecimento de que entre os Estados Unidos e a Inglaterra haja algum acordo desses? Nem lhes passa pela cabeça! Também não há nenhum entre a França e os países francófonos. É uma ideia um pouco peregrina. E o que provavelmente traduz é que o Brasil, aquela grandessíssima nação que nós conhecemos, tem realmente um ego que nós só podemos ter virtualmente. E quer ter a liderança da língua?A liderança são eles, não é? Eles, que foram colónia, podem ser os colonizadores da própria colónia. É uma espécie de imperialismo. O que é um fenómeno diferente daquele que existe na língua hispânica, porque a Espanha condiciona tudo aquilo que se passa no mundo da América Latina, não é verdade? Porque a relação de forças não é a mesma, é inversa. A Espanha nunca foi menos importante do que qualquer uma das suas colónias. Nós criámos um superfilho que é maior do que o pai.
O que pensa quando vê José Saramago prever a integração de Portugal em Espanha num futuro não muito longínquo?
Penso que ele diz isso numa perspectiva de tipo genérico, planetário. Não é na perspectiva filipina, de 1640, de uma Espanha que absorve um pequeno país ao lado. Eu penso que é uma utopia de uma totalidade que não é espanhola nem portuguesa.
Utopia ibérica?
Ibérica. A minha ideia nem é bem essa, porque eu penso que, em todo o caso, neste momento, a coerência interna em Espanha é menor do que a coerência, sem falhas, deste pequeno país que tem 800 anos de coerência política, sociológica, cultural, que resistiu e não se vai dissolver num bloco do tipo hegemónico de uma parte desta península chamada Espanha. A Espanha é que está realmente com problemas dessa própria coerência e dessa própria unidade.
As pessoas, neste momento, andam um pouco deprimidas em Portugal, fruto até da conjuntura económica. Acha que Portugal, nesse campo, está em linha com a Europa? Ou seja, estamos mais ou menos deprimidos do que a realidade média europeia face a esta crise ?
A Europa, de uma maneira geral, está numa relativa depressão. Se nós virmos as coisas num conjunto planetário, esta Europa está numa situação de menor liderança. E, sobretudo, de liderança que se possa chamar política, que já foi a dela noutros tempos. Isso na hipótese de se imaginar que essa Europa, como tal, existiu. Na verdade, a liderança da Europa foi sempre de certas nações da Europa que, num momento dado, hegemonizam, ou têm tendência a hegemonizar o conjunto. A Europa nunca existiu. Como entidade política, naturalmente.
Está a falar, no caso actual, da França e da Alemanha?
Exactamente. Da França, da Alemanha e da Inglaterra. Mesmo se a Inglaterra tem um jogo muito particular que nós conhecemos. Hoje há uma relativização em relação à hegemonia, no campo ocidental, da superpotência Estados Unidos. Estamos à espera que talvez, algum dia, [a Europa] possa ser dessa forma. De maneira que Portugal está, mais ou menos, como os outros países. Neste momento, há uma crise do sistema, particularmente do sistema financeiro norte-americano, cujas consequências se fazem sentir na Europa. E é provável que nestes dois anos próximos, se sinta o que se pode chamar uma espécie de minidepressão. Isso é um pouco preocupante, porque estávamos a começar a entrar numa espécie de percurso normal, acompanhando o que se passa na Europa, e é possível que não seja fácil de manter este progresso que é evidente. Os portugueses talvez não se dêem conta, mas este país quase não tem nada a ver com o país que eu deixei há 50 anos. Também era o que faltava, mas a verdade é que quem viesse de fora [na altura via diferenças gritantes para a Europa] e quem venha de fora agora não vê naturalmente as dificuldades que têm algumas pessoas, mas o aspecto geral é de um país.
Que está na Europa?
Não só que está na Europa. É um país de belas casas, que parece que quase toda a gente tem, de carros que nunca mais acabam. Dá-se impressão, a quem aterrasse aqui vindo de Marte, ou até mesmo só de um outro país da Europa, que somos muito ricos, que vivemos muito bem. E sabemos nós que há aqui problemas graves, não é? Sobretudo para uma parte da população que não participa, efectivamente, nesta espécie de nova euforia gerada pela sociedade de consumo, uma coisa recente em Portugal.
O PSD, um dos partidos da alternância do poder, está a viver uma luta por uma nova liderança. Acompanha minimamente isso?
O jogo político deixou de ter qualquer componente, digamos, de um dinamismo suficiente para que nós nos interessemos por este tipo de luta. A paisagem neste capítulo é muito desertificada, [tal] como se vive em regime único. A superioridade política, neste momento, do PS, é tal que... Pode ser também uma aparência. Mas PSD e PS não são opositores, numa oposição agressiva e dinâmica, como foi em tempos. São duas alternativas à mesma coisa. Isso arrasta uma dramatização menor da cena nacional e quem está lá fora, realmente, não se pode interessar por uma espécie de drama que não existe.As sondagens vão mostrando que podemos estar no início de um novo fenómeno. O Bloco de Esquerda e PCP, juntos, já chegam a, neste momento, cerca de 20% das intenções de votos.
Seria bom ou mau para o País que a alternância que, como o senhor acabou de dizer, se tem feito entre o centro e o centro, passasse a ser feita entre o centro e a esquerda?
Para já, essa esquerda, que se poderia chamar esquerda no sentido clássico, representada realmente pelo PCP - que é um partido de largo enraizamento no panorama político português, pela acção que teve de opositor maior durante o Estado Novo - e o Bloco de Esquerda, mais à esquerda, realmente, do PC, na ordem formal em todo o caso, não é um bloco, também são dois. Não creio que...
Que um deles possa ter a supremacia e possa ascender a esse estatuto de alternativa?
Não penso, não penso. Mas o que é interessante é pensar que, provavelmente, na Europa, neste momento, a representatividade dessas forças é quase uma excepção. Porque a esquerda na Europa está praticamente laminada.
Como avalia os dois grandes personagens políticos do momento em Portugal: José Sócrates como primeiro-ministro e Cavaco Silva como Presidente da República?
José Sócrates é o primeiro-ministro de um partido com o qual eu tenho relações, não propriamente de filiado mas de proximidade e de pertença. Quanto ao professor Cavaco Silva, que vem, realmente, da área do centro, enquanto Presidente da República tem cumprido com o que se esperava de uma pessoa da formação e da capacidade dele. Há uma tendência em Portugal, e isto é uma herança antiga, que vem da figura do rei, de que, na ordem simbólica, o presidente, a não ser que seja uma catástrofe, seja consensual. É como se todos nós precisássemos que a esse nível, num mundo propriamente simbólico, tivéssemos uma referência que fosse indiscutível e que permitisse que o combate político do submundo se travasse, de maneira geral, e nós ficássemos protegidos. O nosso Presidente da República tem essa figura - e todos, os nossos presidentes da República, de uma maneira ou de outra, têm encarnado isso bastante bem.

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