quinta-feira, 22 de maio de 2008

Lisboa e a paisagem

Por Manuel Carvalho (Público) 21.05.2008
A concentração dos fundos do Estado e dos fundos estruturais na capital determinou a criação de uma cabeça cada vez maior que arrasta um corpo cada vez mais anémico. A velha bandeira do cavaquismo que proclamava Lisboa como a metrópole que havia de conduzir o país à Europa e ao desenvolvimento está de volta. Para o Governo, os investimentos na expansão do metro, na nova travessia do Tejo, na construção do novo aeroporto, nas prioridades de ligação do TGV ou até na mais prosaica requalificação da frente ribeirinha são absolutas prioridades nacionais que hão-de centralizar o essencial do investimento público nos próximos anos. Para alguns observadores qualificados da vida pública, como António Mega Ferreira, a opção é tão indiscutível como as vacas na Índia. Porque "os países têm de assumir que há uma cidade que é capital", o que "implica investimentos de outra dimensão". Corolário lógico: "É demagogia criticá-los."
É verdade que muitos dos debates em torno das prioridades do investimento público estão contaminados pelo ressentimento tribal. É também verdade que muito mais importante do que discutir o destino das fatias do bolo é avaliar a importância de projectos concretos para o desenvolvimento, acreditando à partida que as obras públicas são capazes de o promover. Mas se estas premissas são verdadeiras, são-no independentemente do lugar onde será aplicado o dinheiro do Estado. O que não se pode, nem se deve, é formular uma ideologia desenvolvimentista para legitimar o excesso de concentração de gastos públicos em Lisboa e Vale do Tejo. Como aconteceu nos anos dourados de Cavaco Silva ou começa a acontecer na era da governação Sócrates. Criticar esse excesso não é "demagogia", é apenas alimentar a discussão incontornável sobre o país que podemos, ao menos, ambicionar. O que está em causa não é o facto, natural e inquestionável, de a capital receber mais investimento que as segundas ou terceiras cidades. O que importa estabelecer é o grau desse privilégio. Olhando as evidências do passado, o exagero foi evidente. A distância dos níveis de rendimento entre Lisboa e Vale do Tejo e o resto das regiões acentuou-se desde a integração europeia, apesar de a tendência ter abrandado nos últimos anos; a Comissão Europeia lembrou várias vezes que "o problema é que os fundos [estruturais] foram concentrados de forma excessiva na região de Lisboa".
E o que este processo isento de qualquer princípio de solidariedade nacional está a conseguir é a criação de um modelo de desenvolvimento que obedece mais a parâmetros do Terceiro Mundo do que de um qualquer país europeu - um relatório da ONU de 2001, World Urbanization Prospects, apontava para o facto de Lisboa poder concentrar 45 por cento da população do país em 2015. A excessiva concentração dos fundos do Estado e dos fundos estruturais na capital determinou a criação de uma cabeça cada vez maior que arrasta um corpo cada vez mais anémico. É este o país que queremos?
Quando autarcas como Rui Rio ou empresários de Braga ou de Aveiro começam a recuperar as palavras de ordem de há dez anos para questionar a partição dos parcos recursos do Estado, estão a olhar pelos seus interesses naturais, mas, ao mesmo tempo, estão a dar o seu contributo para a discussão sobre os danos que os excessos do centralismo colocam ao país. Ninguém espera que por cá haja "expos" em Aveiro como vai haver em Saragoça, ninguém acredita que o Tribunal Constitucional vá para Coimbra como na Alemanha está em Karlsruhe, ninguém pensa que será o Estado a resolver os problemas que a concorrência mundial coloca à indústria do Norte ou a desertificação aos dois terços do território do interior.
O que se discute é se a frente de obras da ribeira do Tejo é um projecto de interesse nacional capaz de justificar que todos os contribuintes do país as paguem, em vez da Câmara de Lisboa.
Claro que é, como todas as requalificações de frentes ribeirinhas de Melgaço a Vila Real de Santo António.
Só que para essas não há ajudas do Governo.

2 comentários:

PMS disse...

"O que está em causa não é o facto, natural e inquestionável, de a capital receber mais investimento que as segundas ou terceiras cidades. O que importa estabelecer é o grau desse privilégio."

Discordo completamente disto. Não é um facto nem natural nem inquestionável. É, como afirmado, um privilégio.

A meu ver, um privilégio injustificado. O único privilégio que uma cidade deve ter por ser a Capital é a honra de acolher a sede do Governo.

Tudo o resto são privilégios injustificados e anti-democráticos. Valem menos os habitantes de Viseu que os de Lisboa? Devem os primeiros vassalagem aos segundos? Porque esta é capital?

Recomendo a leitura deste post para esclarecer o que devem e não devem ser direitos de uma cidade capital:
http://norteamos.blogspot.com/2008/05/deve-uma-cidade-ser-privilegiada-por.html

Abraço, e continue assim. São necessárias mais pessoas com pensamento independente.

PMS disse...

Obviamente concordo com todo o resto do texto do Manuel Carvalho.

Simplesmente essa passagem me parece inusitada. Aliás, quase sempre que alguém diz "é inquestionável" ou "é óbvio", é porque não é nada óbvio o inquestionável...

E preocupa-me que mesmo alguém com um pensamento anti-centralista ache normal que ser Capital dá direito a privilégios especiais. É que esse é um dos principais fundamentos do centralismo. Em casos mais extremos, afirma-se mesmo que o país se resume à capital.