domingo, 19 de julho de 2009

Parlamento em renovação?
(JN) 19.7.09 PAULO MARTINS
Lei da paridade e proibição de duplas candidaturas pelo PS e pelo PSD obrigam a recrutar mais pessoal político nas eleições que se avizinham. O que muda, se algo muda.
Sónia Sanfona criticou o timing; Leonor Coutinho a decisão em si mesma. Às duas deputadas do PS que em Outubro disputam as câmaras de Alpiarça e de Cascais, respectivamente, não agradou nada que José Sócrates tenha importado do PSD a inédita medida de impedir candidaturas, em simultâneo, às legislativas e a órgãos executivos autárquicos. Tal como outros 14 parlamentares socialistas que concorrem a municípios - como Pedro Nuno Santos (S. João da Madeira), Joaquim Couto (Gaia), Paulo Pedroso (Almada), Marcos Perestrello (Oeiras) ou Fernanda Asseiceira (Alcanena) - elas foram vítimas da mudança de regras a meio do jogo, uma vez que já tinham assumido os desafios. Ficaram subitamente privadas de "almofada", especialmente útil caso percam as eleições. Mais lugares ficam disponíveis nas listas de candidatos ao Parlamento.
Nem Leonor Coutinho, nem Sónia Sanfona correspondem ao perfil da mulher que entra nas listas apenas para preencher os requisitos da lei da paridade. A primeira tem anos de experiência na Assembleia da República, a segunda é uma jovem estrela em ascensão, mas já com créditos firmados. O novo modelo, que se estreou nas europeias de Junho passado, tem constituído um quebra-cabeças para os estados-maiores partidários. Num mundo político predominantemente masculino, assegurar a presença, em cada três candidatos, de pelo menos uma mulher não é coisa que brote de um passe de mágica. Porém, tal como acontece com a proibição de duplas candidaturas, contribui para abrir as listas de par em par. O efeito cruzado dos dois mecanismos cria condições para a emergência de novos protagonistas. Se se traduz em efectiva renovação do pessoal político é o que vale a pena analisar.
De que falamos, quando falamos de renovação? Constitui mesmo uma necessidade ou não passa de palavra oca, introduzida no discurso político para inglês ver? Uma investigação de Conceição Pequito, docente do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), revela que mais de metade dos parlamentares detém experiência anterior na função, o que a leva a concluir que ter sido deputado é o principal critério... para voltar a sê-lo. A composição da outra metade, no entanto, muda a cada eleição. É esta parcela que cria espaço para a injecção de sangue novo. O problema não residirá, portanto, na abertura de "janelas de oportunidade", mas sobretudo no grau de influência política que é concedido aos "caloiros".
"É errada a ideia de que o Parlamento não se renova. Até temos renovação excessiva", assegura Conceição Pequito. Ou seja: não é seguro que ao aumento da oferta de lugares nas listas corresponda um reforço de qualidade política e técnica do Parlamento - com maior propriedade ainda, se pode aplicar o mesmo raciocínio aos executivos municipais. Até porque não são alterados os critérios de recrutamento, nem tão pouco os centros de decisão.
Medeiros Ferreira começa por exprimir a sua discordância quanto à eficácia, em política, de decisões administrativas desta natureza. "Não me merece grande festejo", observa o antigo ministro e deputado do PS, acerca da lei da paridade, admitida como "necessidade temporária", que dentro de uma década perderá a utilidade como mecanismo de promoção da participação feminina na política.
Maiores reservas ainda lhe suscita o impedimento do exercício simultâneo de cargos de eurodeputado, que também já exerceu, e autarca, que tão profunda tempestade política desencadeou recentemente, a propósito da situação de Ana Gomes e Elisa Ferreira, ambas eleitas para o Parlamento Europeu e candidatas a câmaras. Invocando o caso de Fernando Gomes, que há uns anos também levantou celeuma, Medeiros Ferreira sustenta que "um bom presidente de Câmara tem, por desempenhar essa função, muito mais força como deputado no Parlamento Europeu. Sobretudo no caso de um país como Portugal".
Em seu entender, as regras da paridade e a proibição de duplas candidaturas não implicam necessariamente renovação, antes cooptação. "Muitos dos que defendem a renovação são os que querem ter maior capacidade de cooptação dos seus fiéis", afirma. Como o controlo do processo é altamente centralizado, reforça-se a autoridade de quem tem condições para cooptar. Surgirão, eventualmente, mais "cooptadores", mas o efeito será reduzido. "Podem mudar as pessoas, mas não o processo de decisão. Não muda imediatamente quem manda", sentencia o docente universitário.
Ainda mais assertiva, Conceição Pequito caracteriza como "obscuros" os critérios de recrutamento de pessoal político que têm vindo a impor-se, em especial no PS e no PSD. "Seguem uma lógica meramente partidária, clientelar e oportunista", afiança.
Os exercícios de "contorcionismo" para garantir equilíbrios entre diferentes sensibilidades, que tantas vezes dão azo a dissidências, são avessos a "critérios objectivos e formalizados, capazes de assegurar e promover uma verdadeira profissionalização, especialização e credibilização do pessoal político parlamentar". O que prevalece na distribuição de lugares são fidelidades. Em especial o apoio à liderança do momento, que aliás detém um enorme poder na determinação de quem acede às listas. Todos os partidos, formal ou informalmente, reservam aos líderes uma quota. José Sócrates, no PS, toma directamente decisões sobre 30% dos lugares, naturalmente de eleição garantida.
Igualmente céptica quanto à possibilidade de as medidas adoptadas proporcionarem efectiva renovação, Pequito coloca a questão da representatividade sociológica. "A entrada de mais mulheres e mais jovens, por exemplo, ainda que representando melhor o país, não garante melhor qualidade dos parlamentares". A lei da paridade, reconhece, cria condições para uma maior feminização. Contudo, pode não produzir os efeitos desejados. "Estou muito mais curiosa em saber o que vai acontecer a seguir, para perceber com que Parlamento ficamos, se será mesmo mais paritário do que o actual".
A integração de eleitos locais nas listas de deputados é uma estratégia transversal aos partidos. Os estudos que a professora do ISCSP realizou demonstram, porém, que se trata com frequência de "candidatos-fantasma". Nas últimas décadas, atinge em média dois terços o número de candidatos que exercem ou exerceram funções autárquicas. O que significa que este é um critério de selecção muito valorizado. Acontece que poucos assumem efectivamente o mandato, optando em regra por regressar aos cargos para os quais foram eleitos nos municípios. A sua escolha decorre de uma estratégia "meramente eleitoralista", uma vez que quase sempre se trata de personalidades com prestígio local, que mobilizam grande parte do eleitorado.
Este é um dos factores da volatilidade da Assembleia da República identificada por Conceição Pequito. Uma volatilidade tão acentuada que ela não hesita em considerar que a composição do Parlamento traduz uma "fraude eleitoral". Renúncias de deputados para o exercício de funções governativas ou em organismos públicos e frequentes substituições provocam mudanças constantes. Num sistema eleitoral como o português, de listas fechadas, o resultado é que votamos em quem não exerce efectivamente o cargo.
O Parlamento é, assim, desvalorizado, tornado "um local de passagem", com efeitos negativos no grau de conhecimento que os seus membros têm das especificidades da função. A estabilidade que se defende no Governo, nota a professora, deveria também ser exigida à Assembleia. Do facto de não o ser se ressente a qualidade da produção legislativa - problema em tempos suscitado pelo presidente da República. E aumenta a necessidade de recurso à trabalhos técnicos encomendados ao exterior, por falta de competência dos eleitos.
Quer Medeiros Ferreira, quer Conceição Pequito vislumbram no "fechamento" dos partidos uma espécie de mãe de todos os problemas detectáveis neste campo. O ex-deputado socialista, que o considera "um dos maiores defeitos do nosso regime democrático", além da alteração do modelo de recrutamento advoga a abertura a candidaturas independentes, já permitida a nível autárquico, como caminho a seguir, já que os partidos perderiam o monopólio.
"Isso sim, seria uma grande renovação, porque faria do Parlamento uma verdadeira arena de discussão", afirma, convicto, embora admitindo riscos de fragmentação. Sem se poupar a uma bicada certeira: "Vejo pessoas que são contra aparelhos partidários e elas próprias o são".
Conceição Pequito não imputa apenas aos órgãos centrais dos partidos responsabilidades na ausência de ligação à sociedade civil que tantos observadores têm denunciado. Nas estruturas intermédias e locais, cujas pretensões são em regra satisfeitas com a "oferta" de lugares não elegíveis nas listas, ocupados por novos protagonistas, "é maior a oligarquização, o caciquismo e a falta de democraticidade".
Melhorar a qualidade da representação parlamentar não implica, assim, abrir simplesmente as portas das listas, nem apenas intervir no campo da selecção de candidatos. Na óptica de Conceição Pequito, seria necessário tornar menos restritivo o regime de incompatibilidades dos deputados, para que quem tem carreiras profissionais se sinta atraído pela função parlamentar, encarando-a como serviço público.
A volatilidade, essa, só poderia ser combatida através de dois instrumentos: por um lado, um regime de substituições de deputados menos permissivo; por outro, a assumpção pelo eleito do compromisso de exercício integral do mandato.

6 comentários:

Paulo MB disse...

Este artigo vem colocar novamente o dedo na ferida: os círculos uninominais não resolveriam muitos destes problemas? E se fossem abertos a candidatos independentes não seria ainda mais útil? Alguém voltaria a votar num deputado que não vai à AR para se dedicar a outras funções? Não estariam os partidos mais atentos à escolha dos seus candidatos?

Anónimo disse...

Uma questão:
Somos a favor ou contra a profissionalização da política?
Se sim, elevamos o nível mas criáos uma elite desligfada da vida social e do povo; Se não, temos uma parlamento que pode representar ( se ultrapassar o filtro partidário) genuinamento os cidadãos.
Outra questão: como ultrpassar o filtro partidário? Directas? Yes! Mas directas entre os eleitores , não entre os mlitantes "metidos" a martelo e pagos pelos cabos de voto e por quem quiser ter votos. Os eleitores são muito mais sérios do que os militantes-fasntasmas que nós, militantes, conhecemos.
Uma coisa de cada vez na discussão.

Anónimo disse...

Outra questão:
O deputado deve passar a semana na AR armando em técnico e em profissional ou devia estar boa parte do tempo nos círculos a conhecer os problemas e ouvir e falar com as pessoas? Não deveria o Plenário reunir só uma vez por semana para deliberar?

Paulo MB disse...

Estes anónimos estão a dar boas dicas para a discussão. Mas eu gostaria de os tratar pelo nome. Afinal este tema é, ou deveria ser, de interesse para a melhoria do nosso sistema democrático. Directas sim e com todos os eleitores. Estou de acordo que os chamados militantes não sejam os únicos a participar. Afinal quantos desses votantes poderão de facto ser chamados militantes?
Atenção que esta chamada de atenção vale para todos os partidos ditos de massas...

M. Araújo disse...

"...Não deveria o Plenário reunir só uma vez por semana para deliberar?..."

Concordo em parte. Acho que deveria ter o grupo parlamentar em permanência e reunir uma vez por mês em plenário.

Anónimo disse...

Os deputados devem estar "reunidos" sobretudo com o povo para o representar e defender no Parlamento.