segunda-feira, 14 de julho de 2008

Importa não perder a memória

Por Ramiro Teixeira
(PJ) (Das Artes, das Letras) 14.07.2008
“A Queima do Cão de Palha” é o terceiro romance de Pedro Baptista e, a meu ver, o melhor de todos, conquanto se apresente sob o modelo e temática dos anteriores.
Tanto “Sporá” (1992), quanto “O Cavaleiro Azul” (2001), possuem como motivo visões e acções políticas antifascistas, pelo menos ao nível da caracterização do herói masculino, paredes meias, digamos, com as aventuras amorosas por ele encetadas, que são tanto de raiz afirmativa de ser, como de desforra social em relação às parceiras que persegue ou que desfruta sexualmente, filhas família de burguesíssimas origens, ideologicamente comprometidas com o regime que pretende derrubar...
De permeio, não sei se por tempero literário ou a passar por isso, se por acinte machista, são estas aventuras amorosas caracterizadas não digo por desregramentos sexuais, mas por inequívocas imagens de realismo que desvirtuam ou acentuam o carácter do herói que se persiste em apresentar como positivo, de acordo com as teses sócio-revolucionárias do meio do século XX.
Digo desvirtuam ou acentuam dado que, no âmbito do perfil revolucionário de então, qualquer relação amorosa era coisa de somenos, fruto e condição do momento, sem antes nem depois.
O presente romance do autor, “A Queima do Cão de Palha”, ainda que persista nesta temática, apresenta-se, contudo, com variantes de singular importância, a começar logo pela cronologia temporal que estabelece entre as acções revolucionárias encetadas ao redor da primeira República e os últimos anos do Salazarismo-Marcelismo.
Quem estabelece tal ligação é Jerónimo Rates, filho de um modesto tipógrafo da Póvoa de Varzim, cuja história preenche a primeira parte desta obra, educado juntamente com Sara, filha dos patrões de seu pai, com quem trocará amores de que resultarão uma filha.
Envolvido no fracassado levantamento civil e militar de Fevereiro de 1927, do qual resultaram centenas de mortos, milhares de feridos e mais de 600 prisões e deportações, Jerónimo Rates, para escapar a um destes destinos, refugia-se no estrangeiro, vindo a surgir em Paris na década de 60, depois de lutar contra os nazis e se acolher na Argélia, na condição de uma espécie de portador do facho da revolução portuguesa sempre adiada, perante a nova geração que, singrando consciente ou inconscientemente na mesma via, enceta idêntico percurso.
A caracterização desta nova geração possui como referência Vasco Tempestade, cujo nome é já de si significativo, espécie de cavaleiro andante de ideais democráticos, mas que, em rigor, navega no mesmo tipo de imponderabilidade e sustentabilidade de Jerónimo Rates.
Abstraindo do grau etário de cada um, o que os distingue é que o primeiro era revolucionário por condição anarquista, enquanto o segundo o é por condição existencialista, não sendo por acaso que, na segunda parte deste romance, se teçam vastas considerações políticas e filosóficas afins às ideias de Sartre e às que resultaram do movimento de Maio de 1968 – o que, ao fim e ao cabo, tudo unifica, dado que, a meu ver, o movimento de Maio de 1968 não foi mais do que a derradeira manifestação do anarquismo que caracterizou politicamente o começo do século XX.
Ora, tendo em conta estes considerandos, bem se pode acrescentar que a postura destas personagens, ainda que distanciadas entre si, pela idade e pelas motivações, partilham do mesmo desejo de transformação revolucionária em Portugal, sem outra ambição ou pretensão que não esta, como se, porventura, o futuro utópico que ambicionam para o país, por consequência, se viesse a estabelecer sem mais! De facto, em momento algum deste romance se cuida ou especula sobre o que viria a seguir ao derrube da governação Salazarista-Marcelista! Dir-se-ia que a acção revolucionária em que estes intérpretes andam empenhados constitui um fim e um meio para uma espécie de renascimento político espontâneo, sem crises sociais, económicas ou políticas!
Adiante.
Renovando o entrecho inicial, que antes de ser revolucionário é de ligação amorosa, o autor recria uma outra aventura de amor, envolvendo agora Vasco Tempestade e Sílvia, que se conhecem no comboio que os transporta para Paris por causas diferentes.
Quem é Sílvia? Tal como Sara, é uma filha-família de raiz burguesa, cujas origens assentavam numa mãe operária numa fábrica de peixe e um pai metalúrgico, mas que, por artes e malas-artes do tempo, acabou proprietário de uma vasta frota pesqueira, em razão do que Sílvia, aos 21 anos, possuía já um automóvel descapotável, brevete de aviação, de cavalo árabe, etc.!
Com tais atributos, está-se mesmo a ver que este jardim à beira-mar plantado não era espaço apropriado para uma moça com o perfil de Sílvia! De forma que, a pretexto primeiro de um curso de pintura, depois de sociologia, Sílvia partiu para Paris na ambição de conquistar a liberdade que a tutela familiar, apesar de tudo, não lhe concedia fora dos parâmetros e dos interesses burgueses que conquistara.
O encontro com Vasco Tempestade foi coisa de tiro e queda!
Aqui, uma vez mais, o autor recria cenas amorosas de grande intensidade realista, de permeio com cenas de ciumeira que, pouco a pouco, se vão desvanecendo, dado que, na época e nestas questões, a conquista da liberdade sexual era tão importante como a conquista da liberdade política.
Junta-se a este par, Fredy, companheiro de liceu de Vasco Tempestade, que é, porventura, a figura mais singular desta história, enquanto testemunha ocular das aventuras desregradas de sua mãe, ao ponto de a ter como motivo de excitação sexual, e que mercê de tal impulso acaba tendencialmente sadomasoquista ou homossexual, a pretexto duma agressão física infligida por Vasco Tempestade, ainda nos tempos de escola, a qual lhe despertou mais prazer do que sofrimento!
Em face do que mal ou bem transcrevo, comparativamente aos demais títulos do autor, fácil é identificar a persistência dos vectores que àqueles assistem. De forma que, apesar de tematicamente nada de novo este romance nos apresentar, nem por isso ele se apresenta diminuído em relação aos anteriores, antes, pelo contrário, se assume como uma feliz concreção não só de outras tentativas encetadas, mas também de figuras e evocações políticas passadas que importa não perder de memória.
O mais, que não é de menos, diz respeito à estrutura romanesca desta história, que é muito bem conseguida, pese embora, por um lado, o excesso de lucubrações filosóficas em que algumas das personagens aparentemente se deliciam e, por outro, o final conciliador a que recorre, entre a tragédia e a felicidade burguesa...
A saber: Jerónimo Rates, depois do êxito da acção revolucionária encetada, tipo ARA, e de que foi o obreiro maior, acaba fulminado pela doença implacável que nele lavra, caindo no areal, no rés-de-água do seu mar; Fredy, em consequência da confusão de sentimentos que experimenta, a atracção por Vasco e a impotência que o toma em relação a Sílvia, decide auto imolar-se na explosão que acciona; Vasco Tempestade é apanhado nas malhas da PIDE e como todos os grandes heróis da resistência, a fazer fé no que nos impingem, aguenta todas as torturas sem denunciar ninguém; Sílvia, que em rigor só possui a mais valia de ser boa na cama, terá oportunidade de renovar tal qualidade ao acolher de novo o tempestuoso Vasco, que logrou escapar-se em vésperas de julgamento no Plenário...
Espero que permaneçam unidos e felizes para sempre...

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