domingo, 20 de julho de 2008

Sentimentos de quem nunca saiu do Aleixo: moradores criticam decisão de Rio

(JN) 20.07.08 MANUEL VITORINO
"A maior sala de chuto do Porto" está ameaçada de demolição. Tem varandas para o Douro, mas nem todos gostam de viver neste "inferno", onde a droga estilhaçou o tecido social bairro. Para terça-feira anunciam-se protestos.
Joana Raquel, de 6 anos, não parava de correr após a festa de finalistas do infantário. "Está muito feliz", contou a mãe ao exibir o caderno feito de fotocópias e desenhos de várias cores. Lá dentro, estão fotografias, riscos e rabiscos, recordações da passagem pelo jardim-de-infância da Associação de Promoção Social do Aleixo. "Foi uma festa bonita. Adorei. Por nada deste mundo quero sair daqui", diz a mãe da menina.
No outro lado da rua, o cenário é outro: a miudagem já deixou de "jogar à bola" na Escola EB do Aleixo desde o passado mês e paira a ameaça de encerramento a partir de Setembro. "Foi o refúgio de milhares de crianças. Como muitas famílias demitiram-se da sua função de educar e acompanhar os seus filhos, a escola funcionou como o prolongamento da casa. Foi centro de saber, espaço de aprendizagem e partilha. As nossas cozinheiras mataram a fome a muitos alunos", contou uma professora "com vários anos de docência" e para quem os meninos do Aleixo "foram os pequenos heróis" num meio cercado pela toxicodependência.
Rosa Teixeira, presidente da direcção da associação, engrossou os protestos: " O fecho da escola foi o prenúncio da medida tomada por Rui Rio. Anunciou reabilitar o bairro e agora quer demolir as torres. Não há direito", alegou.
Na sombra das árvores um grupo de mulheres "nascidas e criadas" neste mosaico de várias cumplicidades e ilicitudes exaltam-se e fazem ameaças em coro: "Na terça-feira vamos protestar junto da Câmara. O trânsito vai parar".
Atravessou a cidade para conhecer a mulher no Aleixo. Nasceu na Rua dos Pelames, à Sé, e um dia trocou olhares com a futura esposa quando ia visitar a tia a viver há vários anos numa das torres do bairro. "Foi há 16 anos", contou, ao JN, Jorge Amaral, 39 anos, casado, uma filha. Sem trabalho desde que foi conhecida "uma doença grave", o morador diz não trocar este lugar por nenhum outro. Porquê? "É o meu mundo. Aqui fiz muitos amigos. Tenho orgulho em ser da Sé, foi lá que a cidade nasceu, mas é no Aleixo que estou bem", contou.
E as drogas? E o mau ambiente? E as rusgas das polícias não atrapalham o seu dia-a-dia? As respostas são soltas e uma espécie de cartilha: "O ambiente daqui sempre foi bom. Por vezes existem por aí uma zaragatas, os ânimos exaltam-se mas depois já não é nada. No outro dia, voltamos a ser amigos outra vez", refere enquanto cuida da sobrinha, pequena Fabiana de 3 anos.
"Tenho uma família estruturada. Nem tudo é mau neste sítio. Eu sei que o problema da droga está a roubar o sossego de muita gente, mas a droga está em todo o lado. Há tempos, uma vizinha decidiu sair daqui e ir viver para o bairro de Santa Luzia. Dizia ter medo dos assaltos. Mais tarde, veio dizer-me que tinha sido vítima de um assalto. Afinal de contas, os assaltos acontecem em toda a parte", adianta.
Quanto às "ameaças" da Câmara do Porto de realojamentos dos moradores e mandar as torres abaixo, Jorge Amaral nem quer "ouvir falar " em tal hipótese. As razões são várias: "A minha mulher nasceu aqui e eu considero-me um filho do Aleixo. Depois, convém recordar que, quando viemos para cá morar, a casa nem caixas de electricidade tinha e, como tal, tive de pedir um empréstimo ao banco para suportar as despesas. Agora, de um dia para o outro, ameaçam os moradores com a saída para outros lugares. Nem vieram cá consultar as pessoas. Não acho bem o que estão a fazer", adianta.
"Zangado" com Rui Rio, "por ter dito uma coisa e ter feito outra", o morador do Aleixo garante organizar uma manifestação, na próxima terça-feira, para levar o protesto à reunião do Executivo camarário. "Até vamos parar o trânsito. A Câmara deve ouvir a nossa voz e tentar arranjar uma solução mais equilibrada. A demolição pura e simples das torres do Aleixo só vai beneficiar as grandes empresas de construção civil, as imobiliárias", sugere.
Como até à demolição "muita água irá passar debaixo das pontes", a droga continua a estilhaçar o tecido social do bairro. As torres, autênticos mamarrachos urbanísticos construídas há mais de 30 anos, acolhem cerca de 1300 pessoas. É muita gente num pequeno espaço urbano sem grandes horizontes de vida.
Paula tem 20 anos, um rosto de menina acabada de ser mãe. Com a bebé Beatriz, de dois meses, ao colo e um sorriso de adolescente, diz sentir-se "muito bem" no Aleixo na companhia da avó, mais o pai e o sobrinho. As palavras saem devagar quando fala da mãe. "Já morreu", diz, em voz baixa. O futuro não a atrapalha: "Nasci e cresci aqui. Tenho um apartamento bom e, caso a Câmara queira mandar-nos embora, não vou encontrar outro igual. Depois, já reparou como ia arranjar espaço para as mobílias, todas elas grandes? As casas de agora são todas pequeninas e mal dão para a gente viver", sorri, enquanto dá carinhos à bebé, o "amor da sua vida".
Mesmo com zaragatas à mistura, algum tiroteio e rusgas da polícia, a jovem Paula não quer largar o lugar onde nasceu: "Somos uma comunidade. Os meus vizinhos são gente boa. Por vezes, sentimos que nem tudo está bem e as confusões acontecem, muitas vezes motivadas pela droga e a delinquência juvenil. Devia existir mais sossego, mas também não sei as razões pelas quais toda a gente abandona o bairro. Há dias contaram-me que a antiga escola primária fechou. Será verdade?", interroga-se, diante do olhar franzino. "Eu sei que tenho um bebé acabado de nascer e tudo farei para lhe dar um futuro melhor. Não sei muito de política, mas sei uma coisa: a Câmara devia dar mais apoio social às pessoas idosas, fazer obras nas casas, que muitas delas precisam de reparação. Mas não faz nada disto. Até os elevadores estão avariados há vários meses. Não há direito!", garante.
Chora entretanto a bebé e Paula acaricia-lhe o rosto para a conversa continuar. "Há tempos, aumentaram-nos as rendas e agora querem tirar-nos daqui para fora. Já falámos em casa com a minha avó e estamos dispostas a ficar. Se a Câmara insistir, teremos de optar, mas só vamos dizer adeus ao Aleixo caso seja encontrada uma solução adequada. Não podemos ir embora de bolsos vazios", afirma a moradora.
Há mais gente que chega. Uns falam na "falta de limpeza" do bairro, uma idosa lamenta-se por ter subir as escadas até ao 9.º andar, e outra ainda pelo fecho da escola onde o filho esteve até agora. "Que futuro nos querem dar"?.
A notícia da previsível demolição das torres do Aleixo deixou "inquieta" a ex-vendedeira de frutas e hortaliças dos antigos mercados da Ribeira e da Praça de Lisboa. "Nem quero acreditar que deitem tudo isto abaixo". Mais calma, reconhece que "nem tudo está bem no bairro" onde nasceram sete filhos, treze netos e sete bisnetos. "Eu sei que a droga leva à morte de muitos jovens, mas caso tirem os toxicodependentes daqui eles vão para outro lado da cidade. Sempre houve droga e irá continuar a existir. É uma luta sem fim", antevê.
Sentada com as amigas do centro de convívio dos idosos do Aleixo, Maria Alice lamenta a decisão da Câmara e a opção de realojamento dos moradores: "A notícia do Rui Rio foi uma bomba. Eu não estava à espera que fizesse semelhante coisa. O presidente da Câmara veio cá uma vez, antes das eleições, e garantiu mandar fazer obras nas casas. Só veio à procura de votos e, agora, quer deitar tudo abaixo. Acha bem?"
A viver no 11.º andar da torre B, Maria Alice diz "sentir-se muito bem" com vista para o rio Douro e a Afurada. "Quando não tenho nada que fazer venho à janela e consolo as vistas. Esta casa é a minha riqueza", admite, sem contudo fechar a porta a possíveis mudança de ares, desde que as "coisas sejam conversadas e acertadas". "Caso a Câmara do Porto pague os prejuízos causados pela mudança de habitação, poderei pensar no assunto. Mas agora estou bem onde estou. À volta do Aleixo há muitos terrenos vazios. Por que não fazem casas de luxo na Mouteira e nos deixam em paz"?.
"Toda a vida vivi aqui e nunca tive problemas", afirma Maria Goreti, três filhos, empregada de limpeza, cuja boa parte da família e amigos nasceram e cresceram neste mosaico urbano. Habituada ao ambiente social do Aleixo, admite "não ver com bons olhos" a decisão da Câmara do Porto e a hipótese da demolição das cinco torres de betão. "Gostava de ficar cá. Aqui tenho vistas bonitas. Mas, caso não exista outra saída e a Câmara deite abaixo as nossas casas, então vou exigir viver nas Condominhas. Sempre é mais perto do Aleixo", reconhece.
Do bairro só guarda boas recordações: "Tenho um filho de 17 anos e tal como os filhos das famílias ricas chegou ao 12º ano. Nem toda a gente abandona a escola. No Aleixo também há casos de sucesso", garante, enquanto solta a memória para recordar os "primeiros tempos" do Aleixo, as relações de vizinhança, o espírito de entreajuda como já não existe na cidade. "Aqui toda a gente é conhecida. Somos uma família em ponto grande", garante diante da filha Adriana, 5 anos, acabada de sair do infantário. Quando o tráfico de drogas e a toxicodependência são referidas, a empregada de limpeza tem resposta pronta: "A droga está em todo o lado. Na zona chique da Foz também é capaz de existir", diz, enquanto afirma sentir "orgulho" pelo facto de viver no Aleixo. Enquanto fala ao JN, os carros da polícia andam de um lado para o outro. A conversa sofre um compasso de espera: "Aqui mora gente séria. Ninguém vem à caixa do correio roubar os vales dos reformados", diz.

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