domingo, 6 de julho de 2008

Cenário e encenações

06.07.2008, Rui Moreira (Público)
1.A ANA, a empresa pública responsável pelos aeroportos, divulgou os resultados de um estudo, encomendado a consultores internacionais, que pretende demonstrar que a gestão independente do Aeroporto Sá Carneiro (ASC) é inviável. Por que será que a empresa, que tem quadros competentes, não usou os seus meios próprios para fazer essa avaliação? Provavelmente porque, como tantas vezes acontece nas empresas públicas, os seus técnicos são ignorados pelos "boys" que mandam, que ostentam como melhor peça do currículo o cartão de militante partidário e que nada sabem do negócio. Será, ainda assim, que a tutela aprova que a administração de uma empresa pública, prestes a ser vendida, gaste dinheiro a encomendar estudos que usa para desvalorizar os seus próprios activos? Será que a tutela tratou de averiguar da sua credibilidade, ou apurou se a sua encomenda já definia, como condição de adjudicação, o resultado desejado pela administração da ANA?O que se sabe é que a ANA não divulgou a totalidade deste pseudo-estudo e dos seus pressupostos, da mesma forma que se tem recusado, sistematicamente, a disponibilizar os elementos contabilísticos do ASC, que lhe tem vindo a ser solicitados por várias entidades e que poderiam servir para tirar a limpo a questão da viabilidade. Nada que surpreenda, porque ao contrário do que o primeiro-ministro garante, e repetiu na última entrevista, as empresas públicas não divulgam os estudos e recorrem à opacidade, para se furtarem ao escrutínio público. Ora, essa prática inaceitável é da responsabilidade das tutelas, que se fingem desagradadas quando as situações são denunciadas, mas não impedem ou corrigem essas práticas furtivas. No caso presente, pode o primeiro-ministro ter a certeza que, se a intenção desta encenação era travestir de contornos técnicos aquilo que é uma clara decisão política, então o dinheiro gasto foi atirado à rua (ou mais exactamente para o bolso de uma consultora estrangeira).
2.Sócrates prometera, há meses, que alteraria a decisão, tomada em início de 2007, de unificar a construção do novo aeroporto de Lisboa (NAL) e a privatização da ANA, se aparecessem interessados credíveis na privatização do ASC. A verdade é que, logo que esses interessados apareceram, o desconforto do governo, e dos boys a seu mando se tornou evidente. Por isso, é lícito questionar, hoje, se a promessa era sincera, ou se era uma questão de retórica. Será que o Governo foi colhido de surpresa e não contara que surgissem interessados na privatização do ASC, porque a ANA lhe segredara que o negócio era inviável?Ou será que as circunstâncias se alteraram, e é preciso juntar os aeroportos do Porto e de Faro no enxoval para garantir a viabilidade do NAL? Sabe-se que, em vez de optar pela solução "Portela + 1" que poderia ir crescendo em função da procura, o Governo quer libertar a Portela, e para isso vai construir um aeroporto caro em Alcochete. Ora, o aumento dos combustíveis e a crise económica aumentam os riscos dessa solução. Será que, neste contexto, o Governo precisa de dourar a pílula e restringir a eventual concorrência doméstica, assegurando aos futuros proprietários da ANA e do NAL um monopólio privado?
3. Se assim for, Porto e Faro servirão de válvulas de escape, enquanto o NAL estiver em construção. Depois, serão condenadas à irrelevância, pela ditadura das sinergias. Mas será a cidade de Lisboa a pagar a factura última, porque, a troco do negócio imobiliário da Portela, deixará de ter um aeroporto barato e próximo e terá um caro e longínquo, dependente da incógnita do crescimento do tráfego. A "atenização" de Lisboa será, então, inevitável e o TGV Lisboa / Madrid ajudará a escoar os passageiros para os aeroportos espanhóis: para o "baratinho" de Badajoz e, no caso dos destinos intercontinentais, para Barajas. Para nós, portuenses, talvez o TGV Porto-Vigo viabilize uma boa alternativa, do lado de lá da fronteira...

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